Apresentação
Ana Luiza Setti Reckziegel,
Gunter Axt
O período compreendido pela chamada República Velha, ou Primeira República, que se estende de 1889 a 1930, sempre recebeu atenção da nossa historiografia. Quando a massa da produção historiográfica sobre o Rio Grande do Sul começou a deixar os institutos históricos para ingressar nas universidades e florescer nos cursos de pós-graduação, durante os anos 1970 e 80, já havia se escrito bastante sobre a República Velha sul-rio-grandense nas primeiras décadas do século XX.
De fato, tratou-se de um momento chave em nosso processo histórico, em que muitas questões relacionadas àquilo que poderíamos chamar de “identidade cultural gaúcha” foram matizadas. Nessa época, o Estado deu considerável salto de desenvolvimento econômico; a malha ferroviária expandiu-se; abriu-se a barra do Rio Grande; construiu-se um porto marítimo; o comércio e o sistema financeiro expandiram-se; a industrialização corporificou-se; a agricultura diversificou-se e o processo de urbanização foi impulsionado, especialmente em Porto Alegre. Tal efervescência com certeza foi percebida no campo das artes e da cultura, em menor ou maior grau, dependendo da área, mas foi a política que condensou os grandes debates e, também, embates.
Personagens como Gaspar Silveira Martins, Júlio Prates de Castilhos, Antônio Augusto Borges de Medeiros, Joaquim Francisco de Assis Brasil, Raul Pilla, João Neves da Fontoura, Oswaldo Aranha, José Antônio Flores da Cunha, Getúlio Dornelles Vargas, dentre muitos outros, emprestaram seus nomes a cidades, logradouros públicos, instituições diversas e ainda hoje povoam o imaginário coletivo, suscitando paixões, dividindo opiniões. A radicalização da política que brotou no Rio Grande feito erupção após a proclamação da República encharcou todos os poros da atividade social. Mesmo quando a vida parecia seguir seu curso normal, o espectro da guerra e da violência política insinuava-se no horizonte e aterrorizava a memória.
A Revolução Federalista, que se estendeu de 1893 a 95, consubstanciou-se num dos episódios mais dramáticos e sangrentos de nossa história. Durante anos, para alguns, escrever sobre isso chegou a ser quase um tabu. Lembrar as atrocidades de um passado de ódios desaçaimados era também revelar a nossa face incivilizada, evocar fantasmas e atrair o risco de novas represálias ou perseguições. Mas foi nessa guerra civil, revisitada pela historiografia na segunda metade do século XX e no início do século XXI, que se jogou o futuro da República no Brasil. Conectando-se com a Revolta da Armada, a Federalista chegou a conflagrar três estados da nascente Federação, numa avalanche de insubordinação que levou o cerco naval e um bombardeio à capital federal, implantou por breve período a duplicidade de governo nacional, mobilizou o Exército brasileiro, combaliu as finanças nacionais e repercutiu sobre os países vizinhos.
O desfecho dessa revolução, que deu a vitória ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e ao castilhismo – como se convencionou chamar a corrente política e ideológica adunada em torno do líder Júlio de Castilhos –, contribuiu para reforçar o regionalismo gaúcho, às vezes até isolacionista – tema, este, que repercutiu nas artes, sobretudo na produção literária –, e para sedimentar no Estado um modelo institucional peculiar, regido por uma constituição autoritária e centralizadora e garantido por uma sólida força pública, a Brigada Militar. Essa peculiaridade institucional fermentou intenso debate. Enquanto a oposição – vencida, mas não convencida – persistia numa denúncia sistemática ao corte autoritário e conservador do governo castilhista-republicano, a situação arregimentava-se em torno de um discurso de justificativa do regime de forte influência positivista, o que acabou adensando mais um traço importante da especificidade cultural da formação histórica sul-rio-grandense. A doutrina positivista, cunhada pelo filósofo francês Auguste Comte, conheceu em território sul-rio-grandense um dos campos mais férteis de afirmação em todo o mundo, o que, certamente, deixou marcas importantes em nosso perfil cultural.
Tais clivagens e particularidades suscitaram desde sempre um intenso debate historiográfico. A princípio, dividindo os analistas entre aqueles pró ou contra Júlio de Castilhos e Gaspar Silveira Martins, aqueles identificados ao PRR e os mais próximos aos partidos de oposição, sendo os mais célebres o Partido Federalista e o Partido Libertador. Mais tarde, à luz das novas teorias sociológicas de informação predominantemente marxistas, discutiu-se se os governos do PRR foram progressistas ou conservadores, se tinham um projeto de desenvolvimento econômico alternativo para o estado ou não, e, finalmente, se estavam ou não imersos na clássica indistinção entre espaço público e privado e no sistema coronelista de poder, que condicionavam a vida política nacional.
Nos últimos anos, as reflexões que avivam tal debate avançaram muito, graças à descoberta de novas fontes, à cerzidura de novas abordagens, ao acúmulo de erudição sobre o processo histórico regional e à sofisticação da ambiência teórica. Não obstante, ainda parecer-mos estar longe de fechar questão e tudo sugere que a diversidade de interpretações tem-se enriquecido.
Esta obra, portanto, espelha nossa diversidade historiográfica. O leitor atento encontrará divergências de interpretação entre os autores. Enquanto alguns afastam a tese de que o sistema coronelista de poder também vigeu no Rio Grande do Sul, outros reconhecem que ele esteve presente ao nível das relações de poder, pautando o dia-a-dia do fazer-se da política. Enquanto alguns atribuem aos governos do PRR um compromisso sistemático e programático com a modernização do Estado e a diversificação da economia, outros acreditam ter se cristalizado uma aliança de frações de classes conservadoras ao redor do núcleo do poder. Enquanto uns percebem a solidez programática e a fidelidade partidária, outros tendem a captar uma descontinuidade entre discurso e prática políticos, enfatizando o clima de insubordinação intestina às greis e as mudanças de rotas nas políticas públicas. Enquanto uns destacam os progressos que o período trouxe à economia, outros sublinham nossas carências infra-estruturais e salientam a falta de iniciativas transformadoras de parte do governo. Enquanto uns retratam a efervescência cultural no período, outros esboçam nossa insularidade e nossa precariedade.
Não significa que entre os autores aqui presentes também não existam expressivas convergências. A complexificação do quadro social, por exemplo, na esteira de processos como o de urbanização, o de industrialização e o de imigração, é reconhecida por todos. O aburguesamento e a modernização de nossa sociedade também são aspectos recorrentes em diversos textos.
De qualquer forma, essa diversidade de análises nos parece sintomática da vitalidade gozada pelos estudos sul-rio-grandenses, sendo, portanto, conveniente representá-la neste espaço. O leitor, ao se debruçar sobre estas páginas, terá uma idéia razoável, não apenas do estado da arte do conhecimento, mas também uma percepção das interpretações multifárias que o colorem.
Os autores foram escolhidos em função da conexão entre os temas propostos e sua reconhecida excelência investigativa. Mas estamos longe de pretender aqui um esforço enciclopédico ou de presumir o esgotamento do assunto. Alguns temas não chegaram a ser tratados, seja porque o autor convidado não tenha podido, por motivos próprios, participar da edição, seja porque, por orientação metodológica geral da organização da série, não era facultado a um mesmo autor escrever individualmente mais de um capítulo, estabelecendo, assim, que alguns precisassem optar entre, por exemplo, desenvolver temáticas específicas relacionadas à política ou à economia, à cultura ou à sociedade, e assim por diante. Destarte, o fato de não veicularmos nesta edição textos específicos sobre, por exemplo, o Poder Judiciário e a Justiça, o Exército, os portos e o sistema de navegação, a indústria de geração e distribuição de energia elétrica, a indústria têxtil, a metalurgia, enfim, não quer dizer que não existam pesquisas cuidadosas e bons trabalhos desenvolvidos e publicados atinentes a tais assuntos.
Ademais, certos objetos ainda estão a merecer considerável esforço de pesquisa para que possamos avançar numa compreensão mais orgânica do período. As fontes judiciais, por exemplo, restam relativamente pouco exploradas pelos investigadores interessados na cultura social gaúcha. Já possuímos muitos estudos sobre células empresariais, bem como biografias, mas este ainda é um universo a ser desbravado. Sobretudo nas últimas décadas, avançou-se consideravelmente no entendimento da história dos municípios, mas ainda faz-se necessário um aprofundamento e uma maior sistematização dessas informações, sobretudo para o interior do estado. Em que pese tenha sido um dos períodos mais convulsionados de nossa trajetória, a história militar ainda tem absorvido poucas atenções. Além disso, inúmeros episódios marcantes ainda esperam por olhares mais aprofundados, como é o caso dos levantes tenentistas de 1924 a 26. Por sua vez, novos estudos econômicos têm surgido, indicando que ainda há muito que evoluir também nessa área. No campo das relações sociais, estudos sobre gênero, sexualidade, mentalidades e cotidiano estão a todo o momento reconfigurando a compreensão que fazemos da cultura. Aliás, os estudos culturais estão entre as grandes novidades historiográficas do momento, como poderá se comprovar nesta edição.
Este volume, em seus dois tomos, portanto, foi um retrato possível do estado da arte da historiografia sobre a República Velha sul-rio-grandense. Um retrato determinado por uma combinação de fatores tão diversos, como a disponibilidade dos pesquisadores e a existência de pesquisas sólidas a propósito de múltiplos objetos. Acreditamos, contudo, no mérito da iniciativa, pois pela primeira vez avança-se consistentemente na sistematização do conhecimento sobre o período. Confiamos que o leitor possui em mãos um razoável guia para a compreensão histórica do período em tela, a partir do qual poderá aprofundar inúmeras questões de seu interesse.
Outro alerta importante diz respeito à fórmula que distribuiu os capítulos pelas quatro partes do volume: política, economia, sociedade e cultura. Conveniente frisar ser compartimentação, por suposto, arbitrária, de sorte que muitos capítulos, embora alocados numa das quatro partes, acabam tratando de cortes transversais, iluminando um pouco de cada coisa, mas com foco em determinada matéria. Com referência à divisão temática, considerando a amplitude e transversalidade, política, economia e sociedade abrangem mais o tomo 1, enquanto que aspectos da sociedade e cultura são assuntos mais comumente encontrados no tomo 2.
Uma observação curiosa refere-se à vinculação institucional dos articulistas. A maior parte dos pesquisadores reunidos nesta edição ou atua em instituições de ensino e de pesquisa localizadas fora do eixo metropolitano, ou sequer possui uma vinculação institucional exclusiva com uma instituição de ensino superior. Este quadro indica uma mudança considerável no perfil da produção intelectual sul-rio-grandense, expressando a pujança crescente do interior e atestando que a descentralização – geográfica e institucional – da pesquisa e do conhecimento é hoje uma realidade instalada. Mais do que isto, sugere que produção intelectual de qualidade também pode ser desenvolvida fora do ambiente acadêmico tradicional por excelência.
Adiante, vale comentar sumariamente cada um dos textos que integram este volume. Pretendemos, assim, contribuir em alguma medida à navegação do leitor entre as páginas deste livro.
Ana Luiza Setti Reckziegel não abre este volume por acaso. O seu texto sobre a Revolução Federalista procura contextualizar a ambiência que cercou a passagem do Império para a República no Rio Grande do Sul e enfoca o episódio que condensou o cadinho de contradições políticas, econômicas e sociais de forma determinante para a trajetória histórica posterior. A grande contribuição do texto de Reckziegel reside em revelar a complexidade das relações do processo revolucionário com os grupos políticos do vizinho Uruguai, indicando que os gaúchos, em ambos os pólos da luta, promoviam uma espécie de diplomacia paralela à do governo brasileiro.
Em seguida, Ricardo Vélez Rodríguez debruça-se sobre os contornos da doutrina castilhista, indicando os pontos de convergência e de divergência e relação ao positivismo comtista e ao liberalismo clássico. Rodríguez explora o viés autoritário assumido pelo regime republicano brasileiro a partir da afirmação agressiva da doutrina castilhista, marcada, em sua opinião, por traços caudilhescos. Rodríguez mostra-nos como, no plano ideológico, o castilhismo bramiu uma fórmula de tutela da sociedade, que acenava com a libertação democrática enquanto torpedeava o espaço da representação política liberal por excelência, ajudando a equacionar para parcela da elite brasileira o vácuo deixado pela erosão do poder moderador imperial num contexto carregado pela indistinção entre espaço público e privado.
Gunter Axt analisa as características próprias da dinâmica de relações de poder que combinou doses de liberalismo econômico e de autoritarismo sectário no âmbito do sistema coronelista que configurou as práticas políticas na República Velha brasileira. A tensão entre poderes locais e poder central estadual é analisada à luz de uma proposta de periodização da época castilhista-borgista, tomando-se em conta, ainda, os instrumentos de coerção enfeixados nas mãos do presidente do estado pela Constituição de 14 de julho de 1891. Aspectos da estrutura burocrática do Poder Judiciário e da Polícia, bem como do sistema eleitoral e do poder infra-estrutural do aparelho de Estado, também são abordados. Axt procura sintetizar em sua análise uma percepção sistêmica da conexão entre discurso político, prática política e políticas públicas de Estado, oferecendo uma interpretação sobre o sentido social do estado castilhista-borgista. O tema do intervencionismo de Estado na economia é analisado nessa perspectiva, sendo desvinculado da explicação que atribui as investidas estatizantes ao peso da ideologia positivista, para identificar composições e choques de interesses econômicos subjacentes aos grandes conflitos políticos e às ações estatais.
Sérgio da Costa Franco enfoca a trajetória da chamada oposição liberal ao castilhismo ao longo da República Velha. Franco esboça as principais divergências doutrinárias do Partido Federalista, do Partido Republicano Democrático e do Partido Libertador com relação ao PRR, bem como descreve os principais embates entre os dois grandes blocos político-ideológicos, caracterizando as estratégias de ação da oposição federalista-libertadora.
Encerra a parte dedicada à política deste volume o texto de Margareth Marchiori Bakos. A autora propõe um estudo de caso à cidade de Porto Alegre, entre os anos de 1897-1937, período em que foi o palco de um fenômeno de continuísmo sui-generis no país: a permanência, ao longo de quarenta anos, de apenas três representantes de um partido político – o Republicano Rio-grandense (PRR) no governo municipal. A análise desse fato pontua as relações entre o poder político municipal e a construção do espaço urbano, bem como o grau de ingerência na capital do estado, por parte do governo regional, diferenciado, em muitos aspectos, segundo sua opinião, das diretrizes políticas brasileiras.
Marli Mertz abre a parte do volume destinada aos estudos econômicos, justamente por enfocar aquela que foi a atividade produtiva mais importante no período, a agricultura. Seu artigo pretende explicar o processo de ocupação agrícola do Rio Grande do Sul, indicando a coexistência de diferentes sistemas agrários, cada qual com suas características próprias, carregando interesses ora convergentes, ora antagônicos: a pecuária, a agricultura familiar e a agricultura empresarial do arroz.
Eugênio Lagemann detém-se na análise de um dos mais importantes segmentos econômicos da época, o setor financeiro regional, procurando perceber o seu desempenho no período. O autor destaca as diferenças de natureza entre as instituições da época, indicando a origem social do capital que as formou, bem como qualificando a sua importância no mercado. Tece considerações relevantes sobre as conexões do setor com outros segmentos da economia e, também, com o núcleo do poder, avaliando o comportamento do setor notadamente frente às crises, como a de 1929, quando se vivenciou o célebre drama bancário gaúcho, que culminou com a quebra do Banco Pelotense.
Luiz Roberto Targa apóia-se numa visão peculiar do estado sul-rio-grandense, explicando o perfil modernizante, reformista e vanguardista desta formação estatal a partir de sua análise da política fiscal do PRR. A substituição do imposto sobre as exportações pelo imposto territorial, para o autor, revelou uma reforma inédita no âmbito nacional, contribuindo sobremaneira para garantir a diversificação efetiva da pauta exportadora do estado e para a estabilização da renda do setor exportador como um todo. Essa reforma apenas se verificara porque o aparelho de Estado teria se autonomizado em relação aos interesses da classe dominante tradicional da região. Para Targa, esta mesma reforma foi, no todo ou em partes, reiteradamente ensaiada noutros estados da Federação, porém, alhures, jamais foi concretizada. Nesse sentido, o autor não identifica um descompasso entre discurso e prática política para o período, antevê sucessos da orientação institucional autoritária no que tange à modernização efetiva do tecido social e afasta-se de uma lógica analítica inspirada pela teoria marxista, ao admitir que a formação estatal possa autonomizar-se em relação à sociedade.
Para Adelar Heinsfeld, a expansão da malha ferroviária sul-rio-grandense fez parte do projeto político republicano sob influência do positivismo. O autor demonstra como o incremento da atividade agrícola, da pecuária e da indústria da carne e derivados demandou a ampliação de ramais ferroviários pela urgência no escoamento da produção. Além disso, Heisnfeld indica como as ferrovias, principal meio de transporte da época, desempenharam um papel fundamental no processo de ocupação territorial e de desconcentração populacional. Heinsfeld também aborda o conflito entre capital privado e interesse público que conduziu às encampações de 1920, concluindo que o processo intervencionista na economia foi desencadeado em virtude da opção ideológica positivista.
Suzana Bleil de Souza, assim como outros autores deste volume, remete-se ao espaço fronteiriço, uma das marcas socioculturais mais distintivas do Rio Grande do Sul. O faz, entretanto, privilegiando o aspecto da integração econômica, de sorte a abordar o difícil e escorregadio tema do contrabando. Suzana mostra como, no âmbito do espaço platino, as regiões de fronteira caracterizaram-se pela forte presença de vínculos culturais, sociais e econômicos que transcenderam os limites políticos estabelecidos entre os países vizinhos. Seu texto indica como a fronteira uruguaio-rio-grandense articulava-se de forma complementar e o trânsito de homens, bens e mercadorias variavam de acordo com a conjuntura vigente. Procurando mostrar o impacto econômico e, também, político dessa economia informal sobre a formação histórica regional, Suzana revela-nos um mundo com normas próprias e que se desdobra à margem dos relatórios e balanços oficiais sobre a atividade econômica estadual. Seu texto indica como o terreno da política, o setor financeiro, a pecuária e as vias de transporte podem articular-se entre si.
A indústria da madeira é o tema do capítulo de João Carlos Tedesco e de Liliane Wentz, para quem este segmento teve uma importância primordial nos processos de organização econômica, territorial e política durante o período em tela. As madeireiras foram um dos grandes pilares de acumulação capitalista no Rio Grande do Sul. A conexão da indústria madeireira com a expansão ferroviária é um dos temas centrais desenvolvido pelos autores. Da mesma forma, este segmento aparece intimamente relacionado ao processo colonizatório e ao desdobramento das atividades mercantis. Uma das conseqüências sociais dessa combinação de fluxos, segundo os autores, seria a expropriação de caboclos, índios e posseiros, que foram empurrados às fímbrias do território, cedendo espaço para as empresas colonizadoras, o comércio, a pecuária e as madeireiras. Os autores sublinham, finalmente, o poder integrador do setor madeireiro da economia sul-rio-grandense à economia brasileira.
Mercedes Kothe inaugura a seção dedicada à sociedade, tematizando a situação social dos descendentes de imigrantes alemães, com ênfase à diversidade cultural existente no interior do Rio Grande do Sul, para onde convergiu o grosso do fluxo migratório ao longo do século XIX. A maioria, nessas áreas, manteve usos, costumes e tradições de seus antepassados por mais de um século, desenvolvendo uma comunidade solidária, criando associações culturais e esportivas, além de pequenas e médias indústrias e bens de serviços que contribuíram de maneira significativa para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Assim, Mercedes estabelece uma conexão entre os fluxos migratórios vindos da Alemanha, o terreno dos usos e costumes e o processo de industrialização, temática central para compreensão da dimensão econômica, mas que, entretanto, não pôde merecer um capítulo próprio neste volume.
Núncia Santoro Constantino trata da imigração italiana como fato social completo e fenômeno de massas. Núncia analisa o perfil do emigrante e as condições de existência estabelecidas em solo gaúcho. Contextualizando-se os dois países – Itália e Brasil –, a autora procura identificar os fatores de expulsão e de atração, em diferentes momentos do período, destacando, ainda, a repercussão da legislação italiana e da legislação brasileira na ocupação de espaços no Brasil meridional. Política, economia e cultura se fazem, portanto, presentes no esforço analítico de Núncia Santoro.
Thais Wenczenovicz objetiva perscrutar os aspectos econômicos, políticos e sociais relacionados à imigração polonesa, resumindo desde a viagem ao Brasil até a posse da terra, passando pelos delicados caminhos de adaptação. Em sua narrativa ressalta a importância das companhias de colonização. O seu texto oferece-nos uma rica perspectiva da diversidade étnica e cultural da formação social sul-rio-grandense.
Na mesma linha, Izabel Gritti discute a imigração judaica no Rio Grande do Sul. A autora também relaciona as causas de expulsão e de atração de emigrantes, no caso judeus, para o Brasil. Em sua narrativa, ganha destaque o papel da Jewish Colonization Association. Gritti procura analisar as especificidades dos assentamentos de Filipson e de Quatro Irmãos, colônias rurais estabelecidas no interior do Rio Grande do Sul.
Lurdes Grolli Ardenghi analisa a ocupação territorial da região Norte do Rio Grande do Sul sob a ótica da presença dos caboclos, justamente o contingente populacional desapossado em decorrência do incremento do fluxo migratório europeu e do progresso da atividade econômica, especialmente mercantil, agrícola e madeireira. Lurdes evidencia como se dava a forma de subsistência dessas populações, ligada, sobretudo, à extração da erva-mate, atividade que requeria comportamento nômade e demandava a existência de ervais públicos. Lurdes mostra como a disputa em torno desses espaços repercutiu sobre o campo da política, fazendo da região norte uma das mais conflagradas do período em tela. A autora percebe a capacidade de organização política dessas populações e comprova a sua adesão ao bloco oposicionista ao regime castilhista-borgista, indicando, assim, que essa oposição também carregava forte matiz popular. Seu trabalho desmistifica o conceito de terra devoluta e desvenda a intercomunicação entre atividade econômica, imigração e política, denunciando uma das faces mais cruéis da dominação autoritária do período. Beatriz Loner analisa a organização e as mobilizações operárias, descrevendo a composição do movimento obreiro, suas principais correntes internas e a sua relação com o entorno comunitário e político. A diversificação da sociedade gaúcha é resultado do processo de industrialização e do processo de urbanização. A autora esboça o surgimento da classe trabalhadora no Rio Grande do Sul, caracterizando o movimento operário como importante agente na dinâmica política regional. Loner não parece acreditar em concessões do governo oligárquico ideologicamente comprometido com a incorporação do proletariado à sociedade, mas atribui as conquistas dos trabalhadores a sua mobilização. |
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