Apresentação
Fernando Camargo,
Heloisa Jochims Reichel,
Ieda Gutfreind
A disputa do atual território sul-rio-grandense pelos Impérios português e espanhol marcou a história colonial do Brasil meridional. Ela foi responsável pela indefinição das fronteiras ao longo de todo período. Promoveu ações diplomáticas e conflitos que se traduziram em vários tratados de limites, como também o estabelecimento de núcleos populacionais que afetaram continuamente a vida das populações que habitavam o território.
A permanência dessa disputa e a alteração dos limites territoriais que dividiam os Impérios ibéricos na América meridional sofreram a influência das transformações na economia, na sociedade, na política e na mentalidade do mundo ocidental ocorridas ao longo dos séculos XVI ao XIX. Pelo Tratado de Tordesilhas (1494), formulado a partir das razões do mercantilismo e do fortalecimento dos Estados nacionais, o domínio de territórios visava à acumulação de metais e do fortalecimento político das Coroas ibéricas. Quase três séculos após, o Tratado de Santo Ildefonso (1777), amparado nas idéias iluministas e na política econômica fisiocrata, incluía também nas razões da luta pela posse de territórios a importância produtiva das terras.
A disputa territorial entre portugueses e espanhóis refletiu-se também na historiografia que aborda a história colonial. Na sua grande maioria, os autores focalizam esta fase considerando apenas o período e o espaço que correspondem à presença portuguesa no território. Nessa perspectiva, a fundação do presídio de Rio Grande, em 1737, é considerada o marco inicial da história do Rio Grande do Sul, restringindo o território colonial a uma faixa litorânea que se estendia de Rio Grande em direção ao norte. As terras a noroeste, onde se localizavam as Missões, fundadas e mantidas por jesuítas espanhóis, são vistas como um espaço que foi posteriormente conquistado e integrado ao território sul-rio-grandense. Entre o Litoral e a área das Missões existia um amplo território denominado “Terra de Ninguém”, visto como um espaço vazio de população, a ser igualmente conquistado e ocupado. A legitimidade da posse gradual desse território é justificada pelo uti possidetis, pensamento que, ao defender o domínio a partir da efetiva ocupação das terras, orientou a expansão portuguesa. Nesse panorama historiográfico orientado pela disputa colonial, os indígenas do Planalto também tinham pequena visibilidade.
Este volume focaliza a história do Rio Grande do Sul colonial segundo outra perspectiva. Insere as missões jesuíticas, desde a sua instalação, na história gaúcha. Considera que a experiência missioneira, realizada por jesuítas, com a autorização da Coroa espanhola, foi importante para a formação da economia, da sociedade e da cultura. O índio guarani, catequizado pelos jesuítas espanhóis, e o gado, que se reproduziu espontaneamente após a primeira retirada dos religiosos do território das Missões, constituíram-se, inclusive, em fatores decisivos de atração dos portugueses em direção ao extremo sul. Os numerosos rebanhos que se formaram, ocupando terras do norte (Vacaria dos Pinhais) e sudoeste (Vacaria del Mar) fizeram com que o território, que muitos historiadores consideram “vazio”, fosse, na verdade, lugar de trânsito de caçadores, tropeiros, contrabandistas, aventureiros. A importância crescente que a pecuária assumiu foi significativa para que, posteriormente, viessem colonos portugueses e espanhóis, assim como imigrantes d’além-mar, estabelecer-se definitivamente nessas terras.
As disputas das Coroas por territórios não impediram que os intercâmbios econômicos e sociais se estabelecessem entre portugueses, espanhóis, nativos e negros que nelas circulavam. A fronteira constituiu-se, para esses grupos, num fator de aproximação de interesses, não na linha divisória que a historiografia muitas vezes evidencia. O gaúcho, provavelmente, é o símbolo que melhor expressa a integração da vida cotidiana e a síntese cultural por ela produzida.
Este volume apresenta capítulos que procuraram contemplar temas da história econômica, social e cultural na perspectiva acima apresentada. Apesar de termos constatado, ao tentar organizá-lo, que o período colonial não tem recebido a mesma atenção que outros, reunimos a contribuição que pesquisadores recentemente vêm dando à historiografia do Rio Grande do Sul, procurando diminuir a ênfase na análise endógena ou exclusivamente brasileira que nela predomina, ampliando a perspectiva espacial e temporal da mesma.
A história colonial marcou o Rio Grande do Sul até o presente nos aspectos econômicos, sociais e culturais.
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