Texto de contracapa
Na versão mais comum da mitologia grega, Tântalo, decidido a testar a sabedoria dos deuses, roubou seus manjares e, em troca, serviu-lhes a carne do próprio filho Pélope. Descoberto, foi lançado às profundezas do Tártaro, onde, mesmo num vale abundante em frutas e água, foi condenado a não poder jamais saciar a fome e a sede [...]. Toda tentativa de aproximar-se da água era frustrada, pois ela simplesmente escoava; ao erguer-se para colher os frutos das árvores, os ramos fugiam do seu alcance impulsionados pela força do vento.
A expressão ''suplício de Tântalo'', por conta dessa punição
mitológica, refere-se à tensão vivida por aquele que deseja intensamente algo próximo, porém, inalcançável. [...] O martírio ao qual Tântalo
está submetido é uma boa ilustração de um trabalho que pretenda esclarecer a natureza e o papel da arte no mundo contemporâneo. As expressões artísticas, com toda a sua diversidade, assim como a água e as
frutas no Tártaro, insistem em ''escapar'' do alcance das
abordagens conceituais. Compatibilizar a exuberância estética com as restrições próprias da rigidez conceitual é uma missão tão difícil quanto é, para Tântalo, saborear as frutas que lhe atiçam o desejo. No entanto, a analogia não é de todo verdadeira. Ao contrário de um ''suplício'', a atividade de
esclarecer filosoficamente as dinâmicas que a arte envolve pode ser
enriquecedora e prazerosa. O que é próprio da arte – sua saturação estética, sua plurivocidade, suas recusas, sua linguagem e, principalmente, suas metamorfoses – e as engrenagens da teoria podem ser vistas não
como inimigos irreconciliáveis, mas como ''lados da mesma moeda'',
como ''visadas'' distintas sobre interesses e preocupações comuns.
Gerson Luís Trombetta
Texto de orelha
Quando o pensamento é fixado em texto, inicia-se a contagem regressiva da
bomba que o detonará.
O pensamento, a palavra,
a escrita, são corroídos
pelo que chamamos de ''tempo''. (p.27)
O homem supera sua
fase mitológica quando
percebe que os elementos não-verificáveis de suas crenças são tão desconhecidos que não provocam
mais sensação de conforto. (p.86)
Uma das estratégias
do uso político da arteé recorrer a novos recursos artísticos, principalmente ao audiovisual, com seus
fluxos contínuos de
sedução, para transmitir
a ideia de cultoà personalidade, exaltando
o caráter único, raro e
distante do representante
político... (p.121)
Anular o corpo é, portanto, em nossa civilização ocidental e dualista, uma tentativa desesperada da fraqueza
humana de acabar com a dor inerente à vida e que só pode ser efetivamente suportada
se for transformada em arte. (p.151)
...o cinema (ou, ao menos, alguns filmes-ensaio) faria com as imagens o que a
filosofia tradicionalmente faz com as palavras e, por conta disso, um filme seria uma obra para constar na estante da história da filosofia. (p.167)
...formar um cidadão musical e eticamente só é possível ao se realizar o verdadeiro
e perfeito acorde da alma;
dado que ''alma, como a substância humana, é o
sujeito da ética e o seu
cuidado é o que há de mais
divino no homem...'' (p.199)
O fazer filosófico e o fazer poético talvez se caracterizem em certas ocasiões por um mesmo tipo de experiência: o de sentir o intelecto
arremeter mais ou menos
violentamente "contra os
limites da linguagem". (p.211)
Apresentação
Sempre que o ancião se curvava para aplacar a sede, a água recuava, sumia, desvelando o humo escuro a seus pés.
(HOMERO. Odisséia. Canto 11, versos 585-587. Tradução de Donaldo Schüler).
Na versão mais comum da mitologia grega, Tântalo, decidido a testar a sabedoria dos deuses, roubou seus manjares e, em troca, serviu-lhes a carne do próprio filho Pélope. Descoberto, foi lançado às profundezas do Tártaro, onde, mesmo num vale abundante em frutas e água, foi condenado a não poder jamais saciar a fome e a sede: "Vi também Tântalo de pé num lago, condenado à tortura cruel. Embora a água lhe tocasse o queixo, padecia de sede porque não lhe era permitido beber" (HOMERO. Odisséia. Canto 11, versos 582-584. Tradução de Donaldo Schüler). Toda tentativa de aproximar-se da água era frustrada, pois ela simplesmente escoava; ao erguer-se para colher os frutos das árvores, os ramos fugiam do seu alcance impulsionados pela força do vento.
A expressão suplício de Tântalo, por conta dessa punição mitológica, refere-se à tensão vivida por aquele que deseja intensamente algo próximo, porém, inalcançável. O objeto desejado fica, ao mesmo tempo, ao alcance dos dedos e impossível de ser tocado. O martírio ao qual Tântalo está submetido é uma boa ilustração de um trabalho que pretenda esclarecer a natureza e o papel da arte no mundo contemporâneo. As expressões artísticas, com toda a sua diversidade, assim como a água e as frutas no Tártaro, insistem em escapar do alcance das abordagens conceituais. Compatibilizar a exuberância estética com as restrições próprias da rigidez conceitual é uma missão tão difícil quanto é, para Tântalo, saborear as frutas que lhe atiçam o desejo. No entanto, a analogia não é de todo verdadeira. Ao contrário de um suplício, a atividade de esclarecer filosoficamente as dinâmicas que a arte envolve pode ser enriquecedora e prazerosa. O que é próprio da arte – sua saturação estética, sua plurivocidade, suas recusas, sua linguagem e, principalmente, suas metamorfoses – e as engrenagens da teoria podem ser vistas não como inimigos irreconciliáveis, mas como lados da mesma moeda, como visadas distintas sobre interesses e preocupações comuns.
É essa a motivação dos ensaios que agora chegam ao público. Originados e animadamente debatidos nas sessões de estudo do grupo de pesquisa Arte, Sentido e História, os textos aqui reunidos procuram, cada um à sua maneira, elucidar um aspecto das relações possíveis entre arte e filosofia. O projeto, muito consciente das limitações tantalógicas que o acompanham, alimenta-se do otimismo típico das produções coletivas. Os debates ocorridos nas sessões serviram como filtros necessários, retendo os exageros, os delírios e balizando garantias mínimas para que teoria e arte pudessem estabelecer diálogos saudáveis e mutuamente esclarecedores.
O livro está organizado em duas partes. A primeira, O suplício de Tântalo, propõe hipóteses sobre dimensões conceituais, pedagógicas, sociais e econômicas da experiência com a arte. Por ser um mergulho na identidade da arte e no modo como a recebemos, as investigações ali reunidas compartilham a dramática situação de Tântalo, nos dois sentidos que apontamos acima: como tensão, por nunca atingirem o quadro completo, saciedade total, na investigação do objeto; e como riqueza, pois desnudam aspectos importantes da relação entre a arte e o mundo que a cerca.
A segunda parte, As cabeças da Hidra, intenta lançar luz sobre a diversidade das expressões artísticas. Com capítulos que investigam desde a arte no corpo, passando pelo cinema, literatura, música, poesia, pintura e chegando à arquitetura, o projeto analisa as metamorfoses, no tempo e no espaço, dos fenômenos artísticos. Como as cabeças da Hidra (mas sem a sua índole mortal), a arte insiste em regenerar-se e transformar-se, acompanhando (e determinando) as novas demandas, os novos lugares e as novas configurações de sua época. Cada capítulo procura destacar como a arte é capaz de dialogar com a sua própria história e, ao mesmo tempo, auxilia o homem na árdua tarefa de compreender sua identidade.
Como organizador, gostaria de manifestar agradecimentos a todos os participantes do grupo de pesquisa Arte, Sentido e História. O livro agora publicado é um registro vivo dos sete anos de atividades desse grupo, por onde já passaram professores, alunos de pós-graduação e de graduação, bolsistas de iniciação científica, "representantes da comunidade em geral" (parafraseando o sempre criativo Tarso Heckler), artistas plásticos, músicos e atores. Cada um, inspirado pela especificidade da sua formação e da sua experiência, tinha algo a dizer, algo a elucidar sobre os temas e problemas postos na arena. O trabalho no grupo e em grupo revigorou a certeza de que não estávamos apenas "teorizando um tema" mas também (e, talvez, principalmente), cultivando amizades e nos qualificando metodologicamente para o exercício da pesquisa acadêmica. Um agradecimento muito especial a Ester Basso, artista talentosíssima, que, além de participar das sessões, nos cedeu, por muitas vezes, seu ateliê para os encontros de estudo; por certo, estar num ateliê trouxe uma dose extra de inspiração.
Por fim, registro que o livro é mais um integrante da Coleção Memória e Cultura, organizada pelo Núcleo de Estudos de Memória e Cultura (Nemec), ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
Sejam todos bem-vindos a mais este lugar onde o debate sobre as metamorfoses da arte é possível!
Gerson Luís Trombetta
Organizador
Passo Fundo, primavera de 2012
Sumário
Apresentação / 7
Parte I: O suplício de Tântalo
I. Lugartempomorfose
Tarso Olivier Heckler / 15
II. Os lugares da arte: instâncias de formação e
de transmissão do saber
Roberta Del Bene / 55
III. Nas sombras da linguagem: sobre a energia
estética do mito
Bárbara Araldi Tortato / 81
IV. Do copyright ao copyleft: questões sobre a
autoria na era digital
Luiza Santos / 95
V. Walter Benjamin e a crise da arte: a dialética da aura na era da reprodutibilidade técnica
Bruna de Oliveira Bortolini / 113
VI. Clement Greenberg: o inefável na experiência
estética e a qualidade na arte formal
Aline Bouvié Álvares / 123
Parte II: As cabeças da Hidra
VII. O corpo como espaço da arte: autopoiese e
superação metafísica
Francisco Fianco / 141
VIII. Filosofilmes e filmosofias
Gerson Luís Trombetta / 159
IX. O outro lado do belo: a estética do horror
em Edgar Allan Poe
Taciane Sandri de Anhaia / 173
X. O som da pólis: ethos e música na República
de Platão
Gustavo Frosi Benetti, Raimundo Rajobac / 187
XI. Da certeza da morte: uma conversa entre
Jacques Roubaud e Wittgenstein
Marceli Andresa Becker / 205
XII. Thanghka: imagens da iluminação no país
das neves
Daniel Confortin / 217
XIII. Às margens da arte: o Kitsch nos cenários
urbanos
Gerson Luís Trombetta, Lorena Postal Waihrich, Rosângela Salles dos
Santos, Bárbara Araldi Tortato, Paula Boito, Paulo Afonso Bartz
Rodrigues / 243 |
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