Texto de contracapa
O conhecimento sobre o que acontecia antigamente permite estabelecer comparações com o que acontece hoje, assim como ensinamentos extraídos de fatos passados podem e devem se constituir em elementos orientadores na atualidade. A partir do estudo do passado, podemos entender as transformações realizadas na natureza e no mundo das ideias.
Nesta obra, Sandra Da Canal e Thaís Janaína Wencznovicz apresentam, com muita coerência e objetividade, a partir da investigação e análise dos crimes de sedução registrados na delegacia, uma abordagem sobre as jovens dos segmentos populares do município de Boa Vista do Erechim, no período de 1930 a 1945, quando acometidas por uma conjunção carnal. Tais crimes evidenciavam os problemas amorosos que conflitavam com aspectos de ordem familiar e social da época, onde o poder paterno era exclusivo. Ao pai e à família em geral competia zelar pela perpetuação da moral e dos bons costumes que acontecia pela vigilância das moças em seus comportamentos.
As autoras reconstroem a história destas jovens, especificamente as suas vivências sexuais e amorosas na abrangência familiar e judiciária, marcada por fortes valores morais. Explicitam com fundamentação científica a situação das mulheres e da sua sexualidade naquele contexto.
As pesquisadoras, com percepção aguçada, trazem à reflexão uma situação que acontecia e continua acontecendo, mas que não era tratada abertamente, a não ser como citam elas "através dos comentários da vila," uma vez que eram questões de foro íntimo. Os silenciamentos em torno das questões da sexualidade, principalmente das mulheres, não eram abordados sob a ótica científica, filosófica, sociológica. Esses preconceitos estão sendo desmistificados, haja vista o presente estudo colocado à disposição dos interessados no assunto.
Nelsi Antonia Pabis,
professora assistente do Departamento de Ciências Humanas
UNICENTRO - Campus Universitário de Irati
Prefácio
O ponto de partida desta obra é um tema de grande relevância social: a mulher, enfocando a sua evolução histórica desde seu papel de submissão ao homem (seu tutor) até sua parcial independência. Eis o que Sandra Da Canal e Thaís Janaina Wenczenovicz apresentam em Máscaras do corpo, o modo como se dá o processo histórico sobre as mulheres, as práticas de controle social e o cotidiano das relações de gênero.
Os valores morais impostos às mulheres durante muito tempo dificultaram a luta pelo direito de igualdade, porém, não as impediram de buscar construir uma história pautada na conquista de um espaço digno, ao almejarem serem consideradas apenas seres tão capazes quanto os homens, uma vez que suas funções sociais se restringiam basicamente ao afazeres domésticos, à agricultura e à maternidade (à função de reprodutora da espécie).
Esta evolução vem ganhando visibilidade ao mesmo tempo em que se pode constatar o crescente encorajamento da mulher em assumir diferentes papéis na sociedade, uma conquista que gradativamente vem se mostrando nas relações de gênero e na luta pela garantia de seus direitos, rompendo com a idealização feminina imposta pela sociedade, qual fosse, para que uma mulher merecesse o respeito público, deveria apresentar recato e habilidades femininas basicamente.
Para realizar este trabalho buscou-se bases em extensa bibliografia de livros e jornais; em fontes documentais de inquéritos policiais (das décadas de 30 e 40, da Delegacia da Cidade de José Bonifácio) e em depoimentos orais.
Os processos judiciais deixam sua contribuição para a história das mulheres, pois são as queixas na Delegacia, os inquéritos e os testemunhos de processos os únicos registros de suas manifestações. Embora, desde aqueles tempos mostrara-se inexpressivo o número de inquéritos policiais que se transformaram em processos judiciais repassados ao Fórum. Observa-se que, atualmente, as mulheres, mesmo trabalhando para o encorajamento, sentem-se inferiorizadas quando na busca pelos seus direitos, pois ainda preservam valores e sentem-se responsáveis por manter os antigos modelos de perfeição do lar, acabando por viverem violências veladas em nome de uma reputação familiar.
Preservava-se, nas famílias, o poder paterno que decidia sobre o futuro da filha, atribuindo-lhe papéis de meramente esposa, procriadora e que carregasse em si a responsabilidade de ser moça de família, recatada e dotada de habilidades domésticas. Naquele período, através de depoimentos e relatos contidos nesta obra, recriminavam-se as mulheres que não fossem dotadas dessas características impostas pela sociedade; as que fugiam desta idealização eram vistas como maus exemplos, não merecedoras do respeito das pessoas, sendo privadas de uma vida digna.
A partir do resgate histórico apresentado por Sandra Da Canal, é possível perceber a evolução do papel da mulher e o respeito conquistado gradativamente ao desempenhar papéis exclusivamente destinados ao homem. São desafios que contribuem para o encorajamento feminino. A exemplo, destacamos a Conferência dos Direitos Humanos de 1993, em Viena, onde se reconheceu formalmente a violência contra mulheres como violação dos direitos humanos. Destaca-se também o expressivo número de mulheres ocupando em condições de igualdade o mercado de trabalho; assumindo espaços antes exclusivos de homens, como governos públicos, diretorias de empresas/ escolas, juizados, promotorias, delegacias, motoristas, escrivãs...
As palavras que o leitor encontra nesta obra manifestam nossa solidariedade às pessoas que sofrem discriminação e também expressam nosso repúdio a toda forma de violência; trazem à tona indignação e intolerância coletiva. Dessa forma, coloco-me ao lado da autora para lamentar a indiferença e a omissão tão presentes nas relações sociais, ao mesmo tempo em que me sinto na obrigação de assumir o desafio cotidiano de garantir os direitos da mulher, amparados, hoje, na Lei Maria da Penha.
Ana Lucia Silveira de Oliveira
Erechim, outono de 2012
Apresentação
O historiador através do seu trabalho de investigação do passado por meio de documentos, traz para o presente fatos vividos por pessoas, comunidades ou povos numa determinada época. Mas os documentos são pouco explicativos, nem sempre seus significados são explícitos, e o historiador tem a necessidade de interpretar o que neles estão implícitos. Portanto, mais importante que a descrição dos fatos contidos nos documentos, são as análises que possibilitam a compreensão de como aconteciam as relações sociais, políticas, econômicas, culturais e familiares do contexto pesquisado. O conhecimento sobre o que acontecia antigamente permite estabelecer comparações com o que acontece hoje, assim como ensinamentos extraídos de fatos passados podem e devem se constituir em elementos orientadores na atualidade. A partir do estudo do passado, podemos entender as transformações realizadas na natureza e no mundo das ideias.
Em história, os documentos disponíveis podem fornecer elementos para análise nos mais variados segmentos sociais, a depender da ótica do historiador. Dentre estes documentos estão os processos criminais que envolvem os diferentes aspectos, entre eles as lesões corporais e conjunções carnais.
Em Máscaras do corpo, Sandra Da Canal e Thaís Janaína Wencznovicz apresentam, com muita coerência e objetividade, a partir da investigação e análise dos crimes de sedução registrados na delegacia, uma abordagem sobre as jovens dos segmentos populares do município de Boa Vista do Erechim, no período de 1930 a 1945, quando acometidas por uma conjunção carnal. Tais crimes evidenciavam os problemas amorosos que conflitavam com aspectos de ordem familiar e social da época, onde o poder paterno era exclusivo. Ao pai e à família em geral competia zelar pela perpetuação da moral e dos bons costumes que acontecia pela vigilância das moças em seus comportamentos.
As autoras reconstroem a história destas jovens, especificamente as suas vivências sexuais e amorosas na abrangência familiar e judiciária, marcada por fortes valores morais. Explicitam com fundamentação científica a situação das mulheres e da sua sexualidade naquele contexto.
As pesquisadoras, com percepção aguçada, trazem para a reflexão uma situação que acontecia e continua acontecendo, mas que não era tratada abertamente, a não ser como citam as autoras "através dos comentários da vila," uma vez que eram questões de foro íntimo. Os silenciamentos em torno das questões da sexualidade, principalmente das mulheres, não era abordado sob a ótica científica, filosófica, sociológica. Esses preconceitos estão sendo desmistificados, haja vista o presente estudo colocado à disposição dos interessados no assunto.
Para as autoras, existe uma lacuna sobre a história local e regional que envolve o gênero feminino. Com certeza esta obra veio preencher esta lacuna.
Outro aspecto que fica evidenciado, diz respeito às exigências que eram feitas pelas famílias e sociedade com referência ao comportamento das moças, no que se refere ao vestir, ao comportamento sexual, entre outras. Mas essas mesmas moças não recebiam orientação, principalmente na família, sobre as transformações que o corpo passava na puberdade, sobre como acontecia a procriação e por isso, ao permitirem as conjunções carnais, muitas vezes não dimensionavam consequências como a gravidez, ou eram iludidas com promessas de casamento, único espaço para a prática sexual da mulher.
Outro aspecto interessante neste trabalho é a observação de um mesmo evento sob várias óticas, como citam as autoras. O depoimento das pessoas envolvidas dando voz às ofendidas, os discursos dos acusados e das testemunhas.
Também merece destaque a valorização da história local que atualmente objetiva recuperar a história das pessoas comuns. A história local não está desvinculada da nacional ou universal, ela está vinculada a processos sociais mais amplos. Nesta, a possibilidade de generalização. Os fatos ocorridos naquela região podem servir de parâmetro para outras regiões.
No bojo da discussão das questões femininas apresentam outros dados históricos importantes para o conhecimento dos leitores. Na contextualização, localizam a região do Alto Uruguai, o município onde se realizou a pesquisa, o ano da sua emancipação política, as suas características com destaque na população rural, as etnias que povoaram. Rememoram as festas dos padroeiros, como aconteciam os namoros antigamente, critérios para escolha do cônjuge. Destacam as características tanto da escolha do homem como da mulher, as posses que cada um deveria ter, inclusive listando o enxoval que a mulher deveria levar para o casamento.
Neste processo de retomada histórica, possibilitam que muitos leitores e leitoras identifiquem-se com os contextos apresentados, considerando que a pesquisa diz respeito aos anos entre 1930 a 1945 e muitas pessoas ainda podem evocar a memória para trazer ao presente mais fatos sobre este assunto ou outras questões vivenciadas no decorrer dos tempos. Na investigação apresentada os depoimentos enriqueceram muito o trabalho.
Uma das intenções das pesquisadoras foi disponibilizar aos leitores uma obra que apresentasse uma visão de como a mulher era entendida, como era vista dentro da família, o conceito que era atribuído à família pela comportamento da filha. Ao mesmo tempo aponta as questões vivenciadas pelas famílias com referência a um assunto tão específico: a sexualidade das moças.
Apesar das situações constrangedoras pelas quais as moças e suas famílias eram expostas ao prestar depoimentos, de acordo com as autoras, era nas queixas na delegacia, nos inquéritos, nos testemunhos de processo que a mulher, de alguma forma, deixava registrada a sua fala. Através destas colocações, percebe-se o quanto era restrito o espaço da mulher e desfavoráveis as condições para ela, o ônus com o qual tinha que arcar como cuidar sozinha do filho e não ver concretizada a promessa de casamento.
Uma das lições para os dias atuais é de que os jovens devem ser orientados a respeito das transformações que acontecem no corpo, a questão da procriação com gravidez indesejada dentre outros aspectos, pois muitos são os jovens que nos dias de hoje ainda não possuem estas informações e acabam vivenciando situações constrangedoras como no passado. É a história fornecendo elementos para uma educação voltada à sexualidade.
Que estas reflexões tão significativas sejam motivação para as pesquisadoras realizarem novas investigações sobre temas tão pertinentes no nosso meio cultural. Que esta obra sirva de embasamento para outras pesquisas desta natureza.
Nelsi Antonia Pabis,
professora assistente do Departamento de Ciências Humanas
UNICENTRO - Campus Universitário de Irati
Irati, outono de 2012
Prelúdio
Máscaras do corpo: do costume à moral é um livro instigante, e de leitura aprazível, em que pese ter como mote de análise um dos fatos delituosos mais repugnantes, o crime contra a dignidade moral. Da sua consumação, muitas marcas indeléveis permanecem, não apenas nas vítimas, geralmente do sexo feminino, como também nos ambientes sociais em que estão inseridas, deveras carregado de preconceitos, em especial no período de estudo desta temática: de 1930 a 1950.
Assim, o objetivo das autoras ficou claro. No primeiro capítulo, delineiam contornos históricos e geográficos e os perfis de colonização da região do Alto Uruguai Gaúcho, para estabelecer os comportamentos e costumes vigentes à época, marcados por um ambiente eminentemente rural, onde os relatos de violência sexual abarcavam nas delegacias, sem qualquer cuidado referente às questões de gênero, expondo a mulher a uma série de constrangimentos.
O segundo capítulo traz uma análise do contexto familiar e do respectivo papel da mulher junto à sociedade, onde o sentimento de pertencimento a uma célula era muito importante, assim como a mantença do bom nome de berço, no sentido da honra familiar. Tal requisito, para as mulheres, estava atrelado às práticas sexuais, consideradas apenas para atos de procriação. Isso elevava o status de moças de família e, por consequência, as tornava merecedoras de um bom casamento. Como afirmam as autoras desta obra, "a pureza do corpo das moças era uma insígnia de respeito e de distinção moral perante as demais famílias".
No último capítulo, é trazida à baila a ordenação jurídica dos crimes sexuais em que figuravam as mulheres como vítimas da chamada "himenolatria", dando significância ímpar à virgindade, fruto de especial proteção penal, provada antigamente através da membrana vaginal e ligada às noções de progresso e ordem social, símbolo da pureza feminina. No tocante aos registros de ocorrência, para contextualização do leitor, antes de 1940, vigia o Código Penal de 1890, prevendo no Título VIII os "Crimes Contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e Do Ultraje Público ao Pudor", contendo cinco capítulos: I. Da violência carnal; II. Do rapto; III. Do lenocínio; IV. Do adultério ou infidelidade conjugal; V. Do ultraje ao público. Merece destaque o artigo 267, que tipificava o crime de defloramento de mulher de menor idade, mediante sedução, engano ou fraude (posteriormente, em 1940, recebeu nomen iuris de "sedução"); também o art. 267 que, ao tratar do estupro, previa penas diferenciadas se a vítima fosse mulher honesta, pública ou prostituta. Aí transparece o nível de preconceito da época, suscitando as mulheres como verdadeiros objetos de prazer dos homens.
Os chamados "Crimes Contra os Costumes" (denominação de 1940 a 2009, quando passaram a chamar-se "Crimes Contra a Dignidade Sexual"), abrangiam uma miríade de delitos, os quais atualmente encontram-se revogados pelo ordenamento jurídico, tais como o atentado violento ao pudor (figura típica abarcada pelo crime de estupro), sedução (albergava a mulher virgem entre os quatorze e dezoito anos que era seduzida por homem que aproveitava-se de sua inexperiência ou justificável confiança) e rapto (arrebatamento da mulher honesta de sua esfera de proteção para fins libidinosos).
Ainda, referente à ação penal (solicitação de aplicação da pena ao Estado através do Poder Judiciário) de 1940 até 2009, quem deveria movê-la era a própria vítima com suas expensas, contratando advogado, salvo prova de impossibilidade de fazê-lo, mediante representação, ocasião em que o Ministério Público seria o titular da referida ação, como também nos casos de o crime ter sido cometido com abuso do pátrio poder (âmbito familiar), ou na qualidade de padrasto, tutor ou curador.
Atualmente, se a vítima é menor de idade, o Ministério Público oferecerá denúncia de ofício. Sendo maior, dependerá de representação (manifestação da vítima para procedibilidade da ação penal), justamente pela peculiaridade envolvendo tais delitos.
Entretanto, conforme exposto pelas autoras, todo esse aparato legal destinava-se predominantemente às camadas mais humildes da população. Procuravam a polícia no intuito de resolver as mazelas decorrentes dos atos desonrosos dos quais as moças de família haviam sido vítimas. Por sua vez, as famílias mais abastadas, quando ingressavam nesse circuito, o segredo de justiça imperava.
Desta feita, este livro trata-se de leitura imprescindível ao público desejoso em compreender a forma de constituição das famílias nas décadas de 1930 a 1950, onde a mulher era relegada a um segundo plano. Tal situação ainda se reflete no comportamento machista da sociedade, e, por isso, esta leitura também é um convite à reflexão a fim de adotar uma nova postura de respeito e igualdade sem distinções de gênero.
Maurício Paraboni Detoni,
capitão da Brigada Militar,
presidente da LDN – Núcleo de Erechim
Sumário
Prefácio / 5
Apresentação / 9
Prelúdio / 13
Considerações iniciais / 19
Capítulo I - Vivências sexuais do lar à delegacia / 25
O município de Boa Vista do Erechim / 26
Na delegacia, na memória e noutros lugares... / 29
Crime, lei e virgindade / 35
Capítulo II - A honra no corpo e nas famílias do
Alto Uruguai / 39
“Moças de família” – honra e casamento / 42
As “faladas” e as “honradas” / 43
O ato de namorar / 45
“Este” é para casar / 48
Bem comportada e trabalhadeira / 50
Os enxovais / 51
Namorar, noivar e finalmente casar / 52
Os mistérios do corpo feminino / 54
Ficar “mocinha” / 55
A ignorância e os segredos / 55
O cuidado com o corpo / 56
A decência e as roupas / 58
Capítulo III - A desonra e a sedução / 61
Deflorar – Código Criminal da República – 1890 / 61
Código Criminal de 1940 / 63
A sexualidade e o poder / 68
As seduzidas na delegacia – desonra e transgressão / 70
As seduzidas / 72
Quem eram os sedutores? / 77
Do flerte às promessas de amor / 79
O preço do silêncio / 81
Grávida, e agora? / 83
O médico examina / 84
O que dizer ao delegado / 85
Raptar para poder casar… / 91
Processos: prisões e fugas / 92
Considerações finais / 95
Fontes / 101
Referências bibliográficas / 105 |
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