Prefácio
Prof. Darcísio Corrêa,
Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); professor do Curso de Direito e do Mestrado em Desenvolvimento da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ).
O limiar do terceiro milênio traz consigo um cenário fantástico, a desafiar todos os que ainda acreditam ser possível direcionar os processos de globalização rumo a horizontes menos impregnados de desesperança, de incerteza e de ausência de projetos emancipatórios. Entre tantas perplexidades e contradições a permear o atual contexto planetário, é permitido ainda falar-se em democracia, em política e em cidadania, quando tais expressões clássicas da modernidade entram em crise num momento de transição paradigmática ainda não suficientemente delineada?
As mil faces do atual processo de planetarização da vivência humana permitem entrever uma dialética de paradoxos, conflitos, riscos e desafios jamais imaginados pelas mentes mais iluminadas. Ao mesmo tempo em que prevalecem tendências de homogeneização do mundo da vida, a elas se opõem visíveis sinais de fragmentação da sociabilidade. Quanto mais afloram avanços impressionantes na seara científico-tecnológica, sob a hegemonia da informação, tanto mais se tornam frágeis e vulneráveis os mecanismos de controle dos crescentes riscos que rondam o planeta Terra.
O projeto da modernidade, seja ele visto como inacabado, seja como já perdido no tempo, amparava-se em fundamentos considerados sólidos, tendo à sua frente um Estado nacional juridicamente qualificado e voltado à construção das solidariedades coletivas, ao mesmo tempo em que apregoava o valor da individualidade, considerada centro de referência de qualquer organização social. Cabia ao Estado nacional a função precípua de buscar soluções globais para as misérias do mundo, tendo como parâmetro geográfico-político a soberania nacional. Tal projeto tinha como arcabouço central a afirmação ética dos direitos humanos, bem como a racionalidade, a estarem presentes na ação social.
Ao decorrer de seu percurso, no entanto, os ideais iluministas, encampados por um Estado racional e juridicamente estabelecido, passaram a defrontar-se com um emergente sistema de produção, configurado pela relação capital-trabalho, cujo foco, ao invés de privilegiar a materialização das solidariedades coletivas, aguçou as contradições sociais, gerando nova e crescente exclusão dos segmentos mais fragilizados na guerra concorrencial do mercado. No adentrar do século XXI constituíram-se formas extremamente sofisticadas na escala da estratificação social, tendo como consequência o debilitamento da cidadania nacional frente ao poder das forças transnacionais, de caráter desterritorializado e socialmente elitista. Agravou-se, sob novas formas, o confronto entre a afirmação política da igualdade perante a lei e a desigualdade econômica de um sistema de livre mercado pautado pelos princípios neoliberais.
Nesse complexo cenário confrontam-se propostas e perspectivas, que se dividem entre a apologia de um pensamento único, imposto pelos adeptos de uma globalização de caráter descendente, e a defesa de uma consciência universal em favor da igualdade humana básica, sem desrespeitar as diferenças culturalmente estabelecidas. Decorre daí uma interrogação fundamental: como conciliar, num processo de crescentes interdependências planetárias, os interesses e demandas coletivas, ainda nacionalmente conformadas, com a gradativa mundialização da política, em que as decisões acerca de políticas públicas são preponderantemente tomadas pelas elites globais desterritorializadas? Qual o papel da democracia nesse contexto? Como ser cidadão do mundo se as estruturas socioeconômicas se despojaram de propósitos comuns, relegando a solução das mazelas do sistema à responsabilidade dos Estados nacionais, ao mesmo tempo em que lhes são sonegados os recursos materiais para tal? Enfim, como superar o atual paradigma líquido-moderno, que institucionaliza a fragmentação, cultua o efêmero e o imediato numa sociedade consumista e se despreocupa com projetos consistentes de futuro?
A presente obra de Marcio Renan Hamel – A política deliberativa em Habermas: uma perspectiva para o desenvolvimento da democracia brasileira – dispõe-se a encarar a problemática anteriormente exposta, e o faz de maneira especialmente perspicaz, consistente e inovadora. Após uma excursão histórico-sociológica pela experiência da democracia brasileira, com destaque para o papel da sociedade civil na elaboração de políticas públicas, busca analisá-la criticamente a partir da teoria jurídico-política de Habermas, um dos mais renomados e instigantes pensadores da atualidade.
O mérito da pesquisa está justamente no desafio de confrontar o complexo pensamento habermasiano com uma realidade política específica – o caso brasileiro –, procurando daí extrair caminhos emancipatórios. Até que ponto interage uma teoria política elaborada no contexto de Primeiro Mundo com uma realidade latino-americana de Terceiro Mundo, em que a razão comunicativa precisa dialogar a partir de diferenciados e desiguais lugares de fala? Até onde o modelo discursivo de Habermas contribui na busca da construção de uma sociedade mais inclusiva, quando a realidade política brasileira sofre de flagrantes vícios históricos em termos de participação popular e de uma democracia compartilhada?
A proposta do autor é clara: a teoria jurídico-política proposta por Habermas, tendo por foco a política deliberativa e considerando a democracia como procedimento, contribui como referencial emancipatório na análise do caso brasileiro. Sob esse prisma, a lógica do clientelismo político, sistematicamente presente no Estado brasileiro e utilizado como técnica de silenciamento das maiorias excluídas de um espaço digno de vida, pode ser superada pela prática de uma política deliberativa fundada no discurso, tendo como especificidade a razão comunicativa. Nessa ética discursiva, direito e moral se juntam na busca de soluções dialogicamente negociadas a partir de uma racionalidade comunicativa.
A democracia vista como procedimento possibilita resgatar a participação popular, assegurando a todos o acesso ao espaço público. Apesar das dificuldades e limites existentes no processo de participação popular, a obra de Marcio Renan Hamel permite concluir que a categoria política deliberativa se presta como referência de caráter emancipatório no contexto da realidade político-social do Brasil, oportunizando a busca de políticas inclusivas por meio de processos democráticos de desenvolvimento com cidadania.
Está, portanto, de parabéns o autor da presente obra, por se revelar um jovem e promissor pesquisador, preocupado em fazer com que discurso e prática juntem esforços na árdua mas necessária tarefa de contribuir com a materialização de uma sociedade mais justa e democrática. Devem igualmente congratular-se os leitores por essa oportunidade de poder contar com mais esta reflexão, voltada à problemática brasileira, ainda ressentida de um significativo deficit de cidadania. Que produza muitos frutos essa nova perspectiva posta em favor do desenvolvimento da democracia brasileira! |
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