Apresentação
Creio que foi numa manhã, dessas ensolaradas de dezembro, do ano de 1973, que um fato curioso aconteceu. Eu morava com minha mãe, na avenida Brasil, antiga Calçada Alta, e, como fazia todos os dias, dirigia-me ao trabalho no Clube de Diretores Lojistas (CDL), do qual eu era secretário executivo, e eis que nesse trajeto, na esquina da rua Cel. Chicuta com a av. Brasil, estava localizada a Livraria Nacional, dos Irmãos Sfoggia, os quais, vim a saber mais tarde, cansados de guardar montoeiras de livros velhos, que só ocupavam lugar e que quase ninguém comprava, resolveram desfazer-se de uma caixa cheia dessas obras.
Caminhando contra o sol na luz da manhã, deparei-me, sem parar e olhando de soslaio, com aquela caixa de papelão, abarrotada de livros e papéis, que de tão pesada, rompera um lado, esparramando alguns livros pela calçada. Olhei para os lados e, certificando-me de que estava abandonada e de que dono não tinha, dei de mão apenas em um que me parecia mais antigo, pois era datado de 1925, intitulado O puchirão do Gé Picaço, por Julio Simão, Livraria Nacional, Passo Fundo. Segui , então, meu passo, levando com uma alegria disfarçada um livro raro nas mãos.
Li e reli muitas vezes aquelas páginas. Como estava escrito na capa, tratava-se de um poemeto serrano, versos e mais versos, de uma beleza, que sempre que os leio me toca o coração e a imaginação. O que me faz recitar mentalmente: “Verdes campos, cobertos de cerração”, quantos campos se demudem, que dirá meu coração! Com certeza, assim são os nossos campos que se avistam da bela e silenciosa Coxilha e que se avistavam também da cidade de Passo Fundo, olhando-se para noroeste e leste, antes dos espigões tomarem conta até do horizonte.
Sei que tinha em mãos uma obra inédita (pelo menos para mim), que por algum motivo estava inerte, adormecida, mas pouco a pouco fui tentando desvendar-lhe os segredos. Quem seriam aqueles biribas, caboclos, gaúchos, gringos e alemães que figuravam na obra?
Depois de muitos anos passados, a Livraria Nacional não existia mais e, antes tarde do que nunca, procurei seu último dono, César, o qual me disse que nada restou de livros antigos, tudo se perdera naquela caixa, mas que quem costumava comprá-los para presentear os amigos era o dr. Daniel Viuniski, com banca advocatícia criminal ali na rua General Osório, nº 1.044, ao lado da sinagoga judaica. Também ele, causídico de mente privilegiada, herdada de sua raça milenar, confirmou que apenas fazia dos livros regalo para os amigos, não havia mais lembrança de títulos e de autores.
Aquela vontade de conhecer mais sobre o conteúdo do livro permaneceu em mim. Eu queria ler mais livros daquele período, queria conhecer os reais personagens daqueles escritos regionalistas.
Passaram-se mais alguns anos, quando li em Datas rio-grandenses, de Coruja Filho (p. 395), que Cacimbinhas, em 30 de setembro de 1915, por ato municipal nº 30, passou a denominar-se “Pinheiro Machado”, em homenagem ao tribuno gaúcho (sobrinho de Venâncio Aires), iniciativa que foi referendada pelo presidente interino do Estado, gen. Salvador Aires Pinheiro Machado, irmão do senador, de quem o dr. Ney de Lima Costa tinha sido o seu primeiro intendente.
Eu conhecia este tal de dr. Ney de Lima Costa apenas de nome, era verdade. Meu avô materno me disse que tinha sido seu advogado em questões de terras, aqui em Passo Fundo. Um fiozinho da história começava a clarear-me os olhos. Mas em se tratando de história, temos que ter provas e convicção, e eu ainda não as tinha, dispunha apenas de indícios, como veremos mais adiante.
Em 1994, eu, então como diretor de Comércio e Turismo de Passo Fundo, sentia ter chegado a hora de reeditar aquele livro que encontrei na caixa abandonada e do qual tanto gostei e com tanto carinho guardei por todos aqueles anos. Porém, abdiquei do meu sonho, em favor da palavra empenhada ao amigo e companheiro, Paixão Côrtes, conseguindo para ele substancial apoio da RBS, para a feitura merecida e imorredoura de seu livro Danças tradicionais rio-grandenses – Achegas.
Após isso realizado, direcionei minha atenção ao meu projeto de reedição do livro O puchirão do Gé Picaço. Logo procurei conhecer mais sobre o livro, tudo que eu conseguisse, e o caminho natural seria a pesquisa, a qual iniciei pelo jornal O Nacional, de outubro de l925, pois, pela lógica, alguma notícia sobre o lançamento do livro deveria naquele periódico constar. Mas nada encontrei.
Talvez quisesse o destino que eu fosse mais além na história Não haveria atalhos para mim, eu deveria desvendar todos os caminhos, toda a vida, os êxitos e os fracassos, a glória e as humilhações, as alegrias e as tristezas, a vida e a morte. Eu deveria acompanhar par-e-passo, de 1921 a 1933, o êxito, o sucesso, as conquistas, a participação, a política e a guerra, não só de dois ilustres mortais, mas de uma cidade, de uma cidadela, de uma trincheira da democracia, do pensamento livre, aberto, apaixonado e guerreiro, que levou Passo Fundo a tornar-se um baluarte na defesa de ideais longamente costurados, desde 1893, até chegarmos ao Estado Novo, ao progresso e à humanização das leis.
Passo Fundo tornara-se o fiel da balança. A terra de passagem de tropas e tropeiros e agora de trens e de guerreiros, poderia dar-se o luxo de dizer quem passava e quem não passava. Daqui e do Rio Grande, só partiram para conquistar o Brasil os que acreditaram na pátria grande, no altaneiro Brasil. Um deles, ironicamente, gaúcho de nascimento, aqui se quedou estático acreditando nos estertores da República Velha, o outro, um corpo estranho no meio da gauchada. Um gaúcho da Fronteira, filho de pernambucano, atirou-se de corpo e alma, em 1923, em 1930 e 1932, a falar, a pelear, a discursar, a brigar, a escrever, a formar corpos, colunas e batalhões para lutar pelos ideais libertadores dos rio-grandenses.
Na arena da vida, neste pedaço de chão serrano, encontraram-se dois idealistas, dois lutadores, heróis e guerreiros a serem imortalizados em Passo Fundo, pois a nossa memória ainda não lhes fez justiça.
Apresento-lhes o dr. Ney de Lima Costa (gaúcho de nascimento) e o dr. Lacerda Almeida Junior (pernambucano, mas gaúcho de coração). Vamos seguir suas pegadas, vamos desnudar suas vidas, após aproximadamente oitenta anos. |
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