Considerações iniciais
Reconhecemos a existência de uma complexa relação entre comerciantes e colonos, bem como comerciantes entre si em termos de diferenciações, relações mercantis e de poderes que se constituíam, realidade essa que manifesta a dificuldade de dar conta teórica e empiricamente dessa realidade. A visão genérica de comerciante poderá negligenciar hierarquizações, diferenciações, subordinações e externalidades econômicas entre ambos. A inexistência de uma literatura mais trabalhada sobre o tema em regiões e situações específicas nos deixa também limitados em termos de uma possibilidade mais efetiva de dar conta de aspectos que não sejam generalizantes.
O comércio que, para muitos dos entrevistados, resumia-se à conotação de negociante, envolvia diferentes categorias: colono que produzia e vendia para comerciantes e que também comprava (arrematava) dos vizinhos e os revendiam para comerciantes de linhas ou da cidade, ou para consumidores em casas; o que era dono de carroças, mas pagava freteiros; os que eram donos de casas comerciais e ao mesmo tempo de várias carretas; o cargueiro que transportava pouco e vendia de porta em porta na cidade; carreteiros que transportavam produtos de maior volume e que, como nos disse um comerciante, lucravam mais com o comércio, pois trabalhavam com grande volume e a produção alheia. Havia carreteiro que era empregado do comerciante. Muitos comerciantes se juntavam para viabilizar o transporte de produtos até centros maiores, como nas viagens a Porto Alegre, em viagem com grandes carretas e/ou com caminhões, juntavam mercadorias suficientes para uma viagem, principalmente devido ao problema da perecibilidade de muitos produtos e as técnicas incipientes em termos de conservação dos produtos, do custo elevado do frete etc.
O desenvolvimento econômico de uma microrregião dependia muito do comerciante e de sua dinâmica mercantil. É evidente que não se está aqui desenvolvendo essa esfera como horizonte desvinculado das demais, dando-lhe centralidade autoreferenciada; o que se busca é dar ênfase ao papel e importância do comerciante em sua intensa correlação com a produção e os processos de transformação e consumo dos produtos.
O comerciante aparece em muitos escritos sobre a imigração, colonização, industrialização, modernização produtiva etc., ainda que muito rapidamente, quase sempre altamente elogiado, como ator que se constitui e se justifica por si só em torno de uma relação econômica, de um sistema econômico que se desenvolvia e que necessitava do mesmo como condição indispensável. Por isso, sua presença e importância são entendidas como dadas e, portanto, não passíveis nem de análise, muito menos de crítica, muito parecido com o que se concebe como justificativa em torno do granjeiro latifundiário da região da pecuária e das matas do Rio Grande do Sul e suas formas pouco legítimas de apropriação da terra. Há como que uma adaptação, uma configuração entre sujeitos e sistema social. Ou seja, não se discutem a constituição e a dinâmica das relações de trabalho, de acumulação de capital; essas são reificadas, dadas e inquestionadas, ou melhor, justificadas sob a égide da propriedade e essa legitimava muita coisa.
Sabemos que comerciantes, sejam eles pequenos ou grandes, do rural ou do urbano, em suas intensas relações com colonos, retroalimentavam-se, complementando-se ainda que hierarquicamente e possuindo vínculos sinérgicos. No entanto, muitas de suas relações não foram tão harmônicas, nem sem conflitos e muito menos homogêneas em regiões mais antigas e em espaços de novas fronteiras migratórias.
Vê-se pelas leituras realizadas que é comum em algumas abordagens sobre história da colonização no Rio Grande do Sul a identificação do comerciante como elo de ligação e de sinergia produtiva e mercantil entre os espaços da colônia e outras dinâmicas sociais e territoriais, percebendo-o quase que de uma forma naturalizada, enfatizando sua importância e progressismo de uma forma fetichizada e muito pouco dialética, autocentrada na esfera econômica e pessoal, quando não exclusivamente de cunho étnico.
Ao se falar em comércio (aqui entendido como instância da esfera mercantil de intermediação, pois na visão de muitos comerciantes e colonos entrevistados, o mesmo aparece também como espaço, localização, ambiente construído para as trocas mercantis do local), comerciantes e colonos nas primeiras décadas do século XX, principalmente na região colonial do Rio Grande do Sul, de uma forma genérica, não se estará abarcando a totalidade das diversidades, muito menos apostando na possibilidade de uma realidade mais científica. Que ambos se interligavam e se associavam não há dúvidas, porém, diferenciações, hierarquias, ações, concorrências, complementariedades entre pequenos e grandes bem como outros vínculos manifestavam-se especificamente em regiões e meios (rural e urbano; vilarejos e comunidades distantes).
Não se pode esquecer que o comerciante podia ser mesmo um colono, ou um representante do comércio ou da indústria nos mercados urbanos, ou, ambos ao mesmo tempo. Muitos comerciantes de linha eram também colonos e artesãos, ou, então, muitos tornaram-se “colonos fortes” (como alguém nos disse) devido justamente ao fato de serem ou de terem sido comerciantes; muitos se tornaram pecuaristas e comerciantes, aliaram grandes extensões de terra com casas de comércio, inclusive associando-se com grandes expoentes da estrutura econômica pastoril (foi o caso de imigrantes colonos italianos na região de Vacaria e Soledade, de alemães mais para o sul do estado e para colônias novas de antiga característica pastoril).
A combinação entre artesanato e economia de subsistência com a dinâmica de um comércio ainda que aleatório e de alternatividade estava presente em grande parte dos colonos nas antigas colônias e mesmo nos primeiros tempos nas fronteiras de expansão das migrações internas (Álbum..., 1975; Costa; De Boni, 1979).
Sabemos que a dita figura do comerciante, tanto no meio rural quanto no cenário das pequenas cidades interioranas da região colonial, fosse ela italiana, alemã ou outra, tornou-se fundamental em vários horizontes. Suas relações e correlações eram múltiplas, variadas e não-homogêneas.
Braudel já dizia que tornar-se e sobretudo ser negociante é ter, não o direito, mas a obrigação de lidar, quando não com tudo, pelo menos com muita coisa (Braudel, 1996, v. 2). Pode-se dizer que todos os caminhos da colônia e do capitalismo em desenvolvimento levavam, exigiam e/ou demandavam a figura do comerciante, ainda que o mesmo se apresentasse de variadas formas, porém sempre como viabilizador da dinâmica da circulação e de esferas de troca daquilo que era considerado mercadoria.
A agricultura de subsistência e o artesanato doméstico e mesmo o mercantil, com o passar dos anos, foram sendo inseridos na dinâmica de uma agricultura comercial, a qual já vinha se alterando nas colônias mais antigas, vinculadas e mediadas pelos comerciantes (com seus cargueiros, caixeiros-viajantes, carreteiros e caminhoneiros, posteriormente com grandes agroindústrias de banha, vinho, cereais, carnes, dentre outras), aprofundando e complexificando as relações entre o colono e ramos do capital comercial e/ou industrial e, também, ampliando redes de comércio e de interligação inter-regional (Roche, 1969).
Nas colônias das regiões de migração européia, mas não somente nessas, o comerciante e o seu comércio, principalmente o do meio rural, criaram estruturas e redes de organização mercantil, sociabilidades políticas, intercâmbios inter-regionais, inovações produtivas, empreendedorismos em cadeia com setores de artesanato tradicional, manufatureiros, industriais e financeiros.
Não foi incomum em nossas entrevistas a colocação que em determinado espaço tudo girava em torno do comércio e, por sua vez, dos comerciantes (homens de negócio, negociantes), alguns vistos com certo ufanismo e outros de uma forma ressentida em razão de relações que se produziam principalmente no horizonte das trocas em situações desiguais, de dependência, condicionadas e alimentadas por dívidas.
Enfim, dar uma olhada nesses processos é nosso objetivo nesse singelo trabalho, entendido mais como apontamentos do que propriamente uma análise. Nossos apontamentos baseiam-se em pesquisas aleatórias realizadas no decorrer de alguns anos e que, no fundo, estão inseridas e interligadas com outras preocupações analíticas, como é o caso do artesanato colonial, da pluriatividade do colono e seu ethos camponês, com os carreteiros, com memórias de idosos, com as dinâmicas e redefinições da família rural na região colonial italiana do Rio Grande do Sul, com redes agroindustriais e o trabalho agrícola etc. em alguns municípios, em especial no meio rural e urbano de Casca, Serafina Corrêa, Guaporé, Nova Prata, Muçum, Marau, Nova Bassano, Veranópolis, Santo Antônio do Palma, Montauri, assim como algumas relações em municípios com vínculos menos estreitos com a considerada antiga região colonial italiana como é o caso de Passo Fundo, Coxilha, Sertão e Getúlio Vargas. Queremos, com isso, encerrar um ciclo de estudos em torno dessas temáticas, nesse cenário e centrado no horizonte do colono, principalmente em sua dinâmica econômica e cultural das primeiras décadas do século XX.1
A intenção é apenas a de enfatizar a importância e as correlações múltiplas que envolveram a vida mercantil e social da colônia tendo como figura centralizadora o comerciante, apresentando apenas fragmentos empíricos em torno do tema. O desejo que nos move é o de intercambiar e promover discussões com alunos de História, de Economia e de Geografia Regional em torno de alguns aspectos que colaboraram para a constituição de performances socioeconômicas e históricas atuais dessas microrregiões; reconstituir algumas lembranças e micronarrações de membros de famílias que se envolveram por gerações no ramo dos negócios em períodos passados, bem como representações e vínculos, seja tanto no espaço urbano quanto rural, suas múltiplas correlações com a produção do colono de maneira especial, seu poder político, as redes que se constituíam entre comerciantes, sua mediação com atividades importantes como é o caso da madeira, dos suínos e da produção agrícola de uma forma geral, com a incipiente industrialização nascente.
Daremos, também, ênfase a aspectos que vão além da dimensão econômico-mercantil do comerciante em sua correlação com o colono, procurando entender uma tessitura de vivências que durou por mais de meio século com poucas alterações, mas que pelas décadas de 1950 e 60 redefiniu-se profundamente em razão de horizontes técnicos, concepções de modernidade mercantil e urbana/urbanização, elementos infra-estruturais, industrialização, logística de transportes, técnicas de informação/comunicação e de mercado.
(1) Os livros produzidos em torno desses temas são os seguintes: Terra, trabalho e família: racionalidade produtiva e ethos camponês. Passo Fundo: UPF Editora, 1999, 325 p.; Colonos, carreteiros e comerciantes. Porto Alegre: EST, 2000, 144 p. (Esgotado); Um pequeno grande mundo: a família italiana na região colonial. Porto Alegre; Passo Fundo/ Porto Alegre: Acirs; UPF Editora, 2000, 102 p.; Memória e cultura: o coletivo, o individual e a oralidade de memória. Porto Alegre: EST, 2001, 150 p. (esgotado); juntamente com Roberto Sander, Madeireiros, comerciantes e granjeiros. Lógicas e contradições no processo de desenvolvimento socioeconômico de Passo Fundo (1900 – 1960). Porto Alegre/Passo Fundo: EST/UPF Editora, 2002, 285 p., 2. ed.; Ateliês industriais no meio rural: racionalidades empresariais e dinâmicas familiares. Passo Fundo: Editora Clio, 2003; juntamente com Valter Rossetto, Festas e saberes: artesanato, genealogias e memória imaterial na região colonial do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, 2007, 255 p. |
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