Prefácio
Ana Luiza Setti Reckziegel,
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade de Passo Fundo
Há apenas alguns anos a história do norte do Rio Grande do Sul tinha como referência praticamente única os trabalhos de historiadores autodidatas e de alguns eruditos preocupados em registrar a memória da região. Nesses estudos, ricos em informação, privilegiou-se a história numa abordagem cronológica e episódica e registro de personagens de destaque. Esse material, fruto de uma época, constituiu o primeiro impulso para que pesquisadores informados com aportes teóricos e metodológicos atuais se debruçassem sobre a história de Passo Fundo e região.
O panorama historiográfico sobre a região tem-se modificado, desde então, de forma significativa graças, em larga medida, aos trabalhos de pesquisadores ligados ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Reescrevendo a história do Rio Grande do Sul, do Brasil e mesmo as relações com o exterior a partir do Planalto Médio, uma nova geração de historiadores têm contribuído para explicar o Norte rio-grandense.
Em poucos anos de existência o Programa de Pós-Graduação em História da UPF foi responsável por gerar cerca de uma centena de trabalhos de pesquisa sobre temas variados que englobam o movimento de ocupação da região, as relações de poder, as estruturas econômicas, as manifestações culturais, entre outras temáticas.
Esta obra organizada por Alessandro Batistella, Passo Fundo, sua história – Volume I vem contribuir para que as pesquisas recentes ganhem publicação e contribuam para o avanço da compreensão da história da região. Muito mais do que interpretar a história de Passo Fundo, os textos que compõem este livro mantém uma imprescindível articulação entre os vários níveis da escala que compõem o saber histórico. Assim, o Norte rio-grandense não está limitado por variáveis geográficas, visto que a interpretação histórica lhe confere contornos que ligam os acontecimentos locais com as conjunturas estaduais, nacionais e internacionais.
Em 150 anos de existência, os passo-fundenses ganham um belo presente: o esforço deste jovem mestre e promissor historiador que se dedicou a compor esta obra que, sem dúvida, já se constituiu numa referência informativa e formativa para a historiografia regional.
O capítulo de abertura da obra, Cidade na história e a história na cidade, de Ironita P. Machado e Adriana Ferreira da Silva, muito apropriadamente situa a discussão teórica acerca do significado da história na cidade, refletindo questões tais como a identidade, as vivências e o sentimento de pertencimento que constituem a cidade. As autoras não se detêm no âmbito localista, mas apontam para as questões da cidade numa escala de articulações amplas com o contexto que envolve sua história e que remete à própria história da nação.
Trabalhando numa perspectiva de reconstrução do cenário passo-fundense, Alessandro Batistella e Eduardo Roberto Jordão Knack reportam-se, em Antologia do município de Passo Fundo: a cidade e a região durante os séculos XVII, XVIII e XIX, ao processo de formação fundiária na região, destacando que o apossamento foi regra. Apontam, ainda, para a necessidade de retomada do estudo de grupos sociais até agora insuficientemente analisados, tais como os caboclos e os escravos, que nos idos de 1859 perfaziam mais de 20% da população local.
O terceiro capítulo, Passo Fundo do território caingangue, de Tau Golin, aborda a conquista do espaço caingangue/guarani no Norte do Rio Grande do Sul. O autor defende a tese de que a ocupação dessa área visava consolidar o Estado-nação à custa da usurpação do território milenar. Em pesquisa aprofundada em documentação primária, Tau Golin revela que o termo faxinação foi usado naquele momento para justificar o genocídio dos povos autóctones.
Helen Scorsatto Ortiz, em Passo Fundo ao tempo das sesmarias e da Lei de Terras de 1850, discute como se deram as posses de terras no Planalto Médio: “em nenhum momento fazia-se necessário comprovar que os campos pretendidos não estavam ocupados por outros indivíduos ou grupos”. Se a posse era facilitada, a regularização da propriedade via Lei de Terras constituiu-se problemática devido à morosidade dos procedimentos e o custo dos trabalhos técnicos e burocráticos.
Filho de escravo, escravo é? Notas sobre a história de Felipão: um texto de Mauro Gaglietti, Márcia Helena Saldanha Barbosa e Carlos Alceu Machado, constitui um interessante ensaio de microistória, no qual os autores investigam o indivíduo Felipe João da Silva, negro, filho de escravos, que de tropeiro tornou-se proprietário.
Zélia Guareschi Fioreze, Luciane Rodrigues de Bitencourt e Márcia da Silva Jorge, em Passo Fundo: 150 anos e a dinâmica do território, reconstituem o processo de fragmentação do município através dos movimentos de emancipação e constatam que Passo Fundo originou dezesseis municípios de sua área territorial original. As autoras discutem com propriedade os reflexos dessa fragmentação não somente sob a variável geográfica, mas apontam, também, as conotações econômicas e políticas desse contexto.
No sétimo capítulo, O surgimento da mídia impressa no município de Passo Fundo – os primeiros 50 anos, Sônia Bertol e Fabíola Frosi recuperam a memória da imprensa passo-fundense desde o surgimento do Echo da Verdade, em 1890, fundado pelos integrantes do Clube do Toco de Vela, até os veículos de comunicação dos anos 1930.
A Revolução de 1923 e a transição do governo de Borges de Medeiros para Getúlio Vargas na região de Passo Fundo, de Aline Brandt, constitui um apontamento dos principais acontecimentos políticos na região desde o problemático desfecho da Revolução de 1923 até a transição do poder estadual de Borges de Medeiros para Getúlio Vargas. A autora destaca a atuação do líder passo-fundense Nicolau de Araújo Vergueiro e sua estreita ligação política com Borges.
Loiva Otero Félix debruça-se sobre Passo Fundo para evidenciar que a cidade também foi um espaço de violência e que a política, o poder e a justiça agiam como detentoras de tal pressuposto. Em Política, poder e justiça: violência e criminalidade sob os coronéis e no caso Creso, a autora recompõe os bastidores de um assassinato no qual o implicado tinha certeza da impunidade. As diferentes reações das autoridades e escalões de poder repercutiram o caso, que ultrapassou o âmbito local e transformou-se em um rumoroso processo.
O capítulo Passo Fundo, passos verdes marcados: o integralismo no Norte do estado, de Fausto Alencar Irschlinger, trata do integralismo na região na década de 1930, evidenciando que a conquista de adeptos passou pela utilização do aparato cultural, formativo, de entretenimento e ritualístico.
Alessandro Batistella escreve O movimento operário e sindical em Passo Fundo (1930-1945): resistências, movimentos sociopolíticos e a consolidação do circulismo, evidenciando como foi a estruturação do movimento operário na cidade e analisando as mobilizações grevistas – dos ferroviários, dos marceneiros, da carne. No mesmo espectro de análise cruza o sindicalismo com o circulismo e analisa a influência do Ministério do Trabalho e da Igreja Católica sobre tais manifestações.
Cleide Fátima Morettoredige o capítulo XII, A história econômica do município de Passo Fundo à luz de seu desenvolvimento socioeconômico, onde discute as correlações entre os sistemas produtivo e social do município com aportes importantes sobre a prevalência do setor terciário e a concentração de renda.
A política partidária e as relações de poder são os objetos do texto O PTB e a nova configuração do poder em Passo Fundo no pós-1945, no qual Sandra Mara Benvegnú tece um quadro repleto de informações inéditas sobre o campo do político, com destaque para a ascensão, as fissuras internas e a queda do PTB, no pós-1964.
Denuncismo e censura nos meios de comunicação de Passo Fundo (1964-1978),de José Ernani de Almeida também tem como pano de fundo histórico os anos que se inauguram com o golpe civil-militar de 1964 e a progressiva implantação da censura e da repressão aos meios de comunicação em Passo Fundo. Numa bem fundamentada pesquisa empírica, o autor demonstra que a epidemia denuncista foi um triste expediente utilizado pelo regime para calar as vozes contrárias à ditadura.
Márcia Fabiani aborda a história de Maria Elizabeth e o processo de construção de sua santidade no imaginário popular-religioso em Passo Fundo: mais que terra de passagem, terra da santinha Maria Elizabeth de Oliveira: a santa de casa que faz milagre.
O capítulo Passo Fundo e a produção do território pós-anos 1950: migração e urbanização, fruto do trabalho realizado pelos pesquisadores João Carlos Tedesco, Rosa Maria Locatelli Kalil, Luiz Roberto Medeiros Gosch, Adriana Gelpi e Jaqueline Corazza, aborda os indícios das dinâmicas de migração e êxodo rural e o desempenho da urbanização em Passo Fundo. Os autores apontam que nos 150 anos do município este se consolidou como pólo regional, no entanto, levantam questões e apontam soluções que poderiam servir para otimizar este perfil.
A cultura da (não) preservação do patrimônio histórico em Passo Fundo (ou onde o novo é sempre melhor que o antigo), da arquiteta Ana Paula Wickert, traça uma discussão conceitual rica sobre a questão do patrimônio cultural e aponta para a história da arquitetura local, cuja preservação material significa a preservação da própria cultura desta sociedade.
Em direção similar está o trabalho Patrimônio histórico cultural: considerações sobre o centenário de Passo Fundo (1957), de Eduardo Roberto Jordão Knack, que analisa, a partir de uma marco cronológico-comemorativo, as realizações políticas e econômicas das elites locais como herança simbólica que foi sendo absorvida no imaginário social através da representação de uma memória do progresso.
Passo Fundo do centenário ao sesquicentenário: quê significados? é o capítulo XIX, elaborado por Haroldo Loguercio Carvalho, que discute as representações contidas nesses dois marcos comemorativos em termos de elementos constituidores da identidade local, apresenta significativos e levantamentos sobre população, educação e economia local.
No capítulo A história do gaúcho de Passo Fundo: a legitimação do gauchismo na historiografia do município nos séculos XX e XXI, João Vicente Ribas faz uma análise da apropriação do discurso gauchesco como produção dos campos cultural e político. Questiona o modo da construção do gaúcho de Passo Fundo no imaginário popular como uma ilusão bem fundamentada.
Encerrando a obra, o texto de Tau Golin, Identidade gentílica e capital simbólico, traz a arguta provocação do historiador: o gaúcho constitui um o grupo social que nunca existiu em Passo Fundo. Afinal, reflete o ensaio, qual é a identidade dessa sociedade? Tem esta uma identidade? Ou é forjada episodicamente?
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