Introdução: Plotando o narrador
Tau Golin
Tudo começou no galpão do Iate Clube Guaíba, quando se realizava um churrasco na noite que antecedia a largada do velejaço, a regata cruzeiro promovida anualmente pelo Clube Náutico Itapuã. A cidade, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil.
A Christina Pinho Silveiro, a Tina, do veleiro Forest, me apresentou o Adriano Machado Marcelino, comandante do Passatempo. Durante a conversa, fiquei sabendo que ele e o Ademir de Miranda (Gigante) estavam ultimando os preparativos para a navegada de Porto Alegre a Fernando de Noronha. E o mais interessante: ainda havia uma vaga na tripulação do Passatempo. Acertamos minha inclusão e, como vento rebojado, meu rumo mudou. Passei a organizar minhas atividades adequando-as à expedição.
O meu projeto de história comparada da navegação ganharia novos ventos.
Além do desafio, tinha o interesse acadêmico de praticar mais intensamente pesquisas em espaços indicados nos textos históricos referentes à navegação costeira. Ficar no mar constantemente; singrar as mesmas coordenadas de navegadores dos últimos cinco séculos; poder comparar realidades de tempos diferentes e formas de navegação era simplesmente tentador e uma oportunidade rara de aderência às minhas atividades de professor pesquisador. Além da permanência de 24 dias a bordo de um veleiro Bruma, de 19 pés, na costa catarinense, e de visitas aos sítios históricos feitas por terra ou embarcação miúda, não tinha experiência de navegação de longo curso. O convite do Adriano abria um novo rumo para minhas pesquisas e planos de velejador do Guaíba e da lagoa dos Patos.
Na seqüência, fiz amizade com o Gigante, comandante do Entre Pólos, que apenas conhecia de passagem pelos trapiches do Iate Clube Guaíba.
Ali iniciava a minha amizade com os dois comandantes. Alguns dos tripulantes eu já conhecia das navegadas pelo Guaíba; com os demais estreitei laços de camaradagem durante a jornada.
O surgimento deste livro não é a conseqüência de um projeto previamente elaborado. Não havia concebido formas de narrativa e, nem mesmo, os registros. Na verdade, o material reunido aleatoriamente acabou impondo a sua força, pedindo uma narrativa organizada e editada em forma de livro. De um aparente caos, depois que os veleiros findaram mais de 3.000 milhas náuticas navegadas, reunindo o material dos tripulantes, tínhamos em torno de cinco mil fotografias, mais de duas horas em vídeo, anotações esparsas e centenas de conteúdos soprando em nossas almas e memórias. As informações, impressões, argumentos, revelações, socializaram-se ou eram confessadas em prosas de bordo, ou em convivências posteriores.
De forma concreta e tradicional, apenas o Adriano Machado Marcelino redigiu um diário de bordo, com as informações indispensáveis da rota, acrescentando detalhes pertinentes quando eram necessários e o tempo permitia, pois dependia das atracagens em locais em que pudesse acessar a internet e enviar as “pernas” velejadas para o Danilo Chagas Ribeiro, do site www.popa.com.br.
Ao retornarmos para o sul, com o passar do tempo, fui sendo tomado pela compulsão que invade o jornalista e o historiador diante de eventos incomuns e dos comentários extraordinários. Assim, aos poucos, criei um compromisso silencioso comigo e com os tripulantes para fazer outros registros de nossas histórias. E até mesmo ampliar as fantasias de certas situações hilariantes ou trágicas. Num primeiro momento, com o auxílio da Faculdade Artes e Comunicação, da Universidade de Passo Fundo, onde sou professor, formamos uma equipe com alunos, e produzimos o DVD Dois veleiros na costa do Brasil.
Depois surgiu a idéia deste livro. Todavia, tive de buscar a solução de um problema narrativo. No início, pensei em um texto coletivo, mas desisti diante do resultado da redação. Então, busquei o método de um narrador mesmo sendo três os autores e muitas as fontes. A esteira principal foi deixada pelo diário do Adriano. Comecei a redigir com base no texto do capitão do Passatempo, permanecendo diversas de suas passagens incorporadas neste livro e todas as suas descrições. As informações suplementares do Entre Pólos foram obtidas em conversações com seu comandante. Seguidamente troquei correspondência com os dois comandantes para esclarecer dúvidas.
Esses elementos permitiram a adequação de um texto final entre o jornalismo (testemunho para experiências que não se vive) e o memorialismo, pois não estive a bordo em toda a singradura. Coloquei-me, dessa forma, como o contador de história onipresente, vivendo essa experiência por mim e através dos meus parceiros de navegada.
Nossa perspectiva possui muito de nossas coordenadas existenciais, além de recolhermos o sentimento dos costeiros, dos índios do litoral e dos antigos povoadores: aos grandes espaços de águas denominavam de “mar”; referiam-se às lagoas, aos rios caudalosos do interior do continente e às enseadas marítimas abrigadas, como “mar de dentro”; ao oceano, como “mar de fora”. No mundo ibérico, na Europa e nas colônias espanholas e portuguesas, os dois termos se incrustaram na própria geografia e denominam diversos lugares costeiros. Geralmente, o “mar de dentro” designa as localidades com águas abrigadas, e o “mar de fora”, aos oceanos e aos espaços submetidos à inclemência de seus golpes.
De certa forma, a bordo desse imaginário, somos homens de dois mares: o “de dentro” e o “de fora”. Em terra firme vivemos adstritos às águas do Guaíba, da lagoa dos Patos, da lagoa Mirim e dos grandes rios do Sul, os quais são partes do nosso “mar de dentro”, especialmente a lagoa dos Patos; o Atlântico Sul é o nosso “mar de fora”.
Pertencemos a um território vinculado à náutica. O nome do Estado originou-se em um rio (denominado de Jacuí, rio dos jacus, pelos índios, e de rio Grande, pelos conquistadores), e o de sua capital, em um porto. Aliás, das quatro capitais históricas, além de Porto Alegre, as vilas de Rio Grande e de Rio Pardo também eram portuárias.
Na perspectiva dessa tradição, essa é a história de dois veleiros e seus tripulantes que, em 2005, zarparam do “mar de dentro”, representado pelo rio/lago Guaíba e lagoa dos Patos, arrebentaram a barra de Rio Grande e ingressaram no “mar de fora”, no oceano, percorrendo, somente em direção ao Norte, 3.000 milhas náuticas da costa brasileira.
Nós três, os autores deste livro, e os demais protagonistas dessa aventura esperamos contribuir de alguma forma com a navegação brasileira, além de contar uma história saborosamente humana.
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