Entrevista para jornal
Quatorze anos de intrigas e medos
(Por Daniel Bittencourt, repórter)
Publicado no jornal O Nacional, Passo Fundo, n. 23.354,
6 dez. 2006
Marcando o último dia da Feira do Livro de Passo Fundo, Denuncismo e Censura nos Meios de Comunicação de Passo Fundo - 1964/1978 não é um livro que mostra bons ou maus personagens daquela época na cidade, e sim o que existiu em um período, em que a censura era categórica e se manifestava abertamente.
O livro nasceu da tese de dissertação de mestrado do historiador e professor de história José Ernani de Almeida, que pesquisou os jornais locais - Diário da Manhã e O Nacional -, e dezenas de entrevistas com jornalistas, radialistas, professores, padres, sindicalistas, militares, entre outros.
O período escolhido abrange a deflagração do golpe militar, em abril de 1964, até 1978, quando o país passou a viver o período da "distensão lenta e gradual", proposta pelo presidente Ernesto Geisel.
Em entrevista ao Segundo, o autor do livro comenta sobre uma fase da vida política de Passo Fundo, quando os proprietários dos jornais se mantinham alinhados ao governo militar, mas permitiam que críticas fossem feitas a ele, sendo que os jornalistas é que acabavam respondendo pela opinião que emitiam.
Segundo - O que te motivou e escrever o livro?
José Ernani - Foram duas questões. Uma foi a questão acadêmica, por causa do mestrado, e a outra porque eu comecei a trabalhar em rádio em 1966 e acompanhei praticamente desde o início o processo de repressão e censura nos meios de comunicação em Passo Fundo. E eu sentia aquilo no trabalho. Até porque, obviamente, todo o estado autoritário ataca primeiro o meio intelectual, o meio estudantil e os meios de comunicação. E aqui em Passo Fundo a coisa se tornou ainda mais radical, porque o golpe veio em meio a um acirramento das rivalidades locais. E isso devido a duas questões: em 1963, o PTB, que comandava a prefeitura desde 1946, perdeu a eleição. Então nesse momento há uma disputa muito grande pelo controle do ensino universitário em Passo Fundo, através da SPU (Sociedade Pró-Universidade), que estava nas mãos do PTB, na figura de César Santos. Com a ascensão de Mário Menegaz e Romeu Martinelli, que eram inimigos do PTB, ocorre o quê: César Santos e o PTB perdem o mando político e perdem o controle da SPU. E Passo Fundo esteve no olho do furacão, porque o governador Meneguetti transferiu o governo do estado para Passo Fundo logo quando estourou o golpe militar, com medo de que Porto Alegre fosse atacada pelos brizolistas. E como ele era pró-ditadura, o quartel da Brigada na cidade passa a ser a sede do governo do estado do Rio Grande do Sul. Inclusive a Rádio Passo Fundo, na época, passou a ser a rádio do golpe.
Segundo - Então o golpe trouxe para a cidade uma tensão enorme?
JE - Com certeza. E era uma pressão que não precisava existir, pois aqui as coisas sempre foram muito polarizadas, e ainda são. Passou a existir um contexto de uma sociedade, cuja democracia havia sido violada e começou a surgir uma fragmentação. Apareceram grupos diferenciados, como os oprimidos, que em alguns momentos ficaram marcados pelo medo e em outros pelo heroísmo. E aí estão incluídos alguns jornalistas. E o curioso é que os dois jornais diários da cidade, Diário da Manhã e O Nacional, que sempre foram inimigos - até porque o Múcio de Castro havia sido deputado pelo PTB e o Túlio Fontoura pelo PSD -, apoiavam o golpe. E isso até por uma questão de sobrevivência. Agora, em função das demandas locais, se fosse para atingir um ao outro, ambos criticavam a ditadura. E isso é curioso, porque na pesquisa que fiz, em uma mesma edição, poderia existir um editorial elogiando o regime militar e logo ao lado um artigo criticando violentamente a postura do comando militar.
E O Nacional vai com esse apoio até 1965, quando acontece o episódio de empastelamento do jornal pelo então major Grey Belles, que fecha o jornal por causa de uma notícia publicada pelo jornalista João Freitas, que foi preso elevado para Porto Alegre, onde ficou incomunicável por mais de 40 dias. Com isso houve um rompimento da relação entre Múcio e Grey Belles.
Segundo - Tem uma passagem bem interessante nesse caso da prisão do João de Freitas, certo?
JE - Sim, o Múcio de Castro não sabia da prisão e quando ele chegou ao jornal e disse que o Grey Belles não era homem suficiente para gerar um filho na própria mulher e que se ele estivesse ali ele mataria Belles. Então foi até o quartel para buscar João Freitas e ele já havia sido levado para a Capital. Eu passo por todos esses episódios, sempre levando em consideração o contexto nacional, estadual e as repercussões em Passo Fundo. Eu penso que, ideologicamente, pode-se fazer muitas relações. Não haviam os revolucionários e os contra-revolucionários. Na verdade os donos dos jornais não gostavam um do outro. E daí surge um elemento que eu não esperava encontrar nessa minha pesquisa, que é o denuncismo. E surge naquela época, uma verdadeira epidemia denuncista. Um grupo denunciando o outro para as autoridades da Brigada e do Exército.
Segundo - Então os dois jornais se acusavam?
JE - Sim. E com isso todo mundo passa a ser visado. Então surgiu uma coisa muito própria de Passo Fundo, que eram as denúncias vagas, sem embasamento. E as ciladas começam a ser preparadas. O medo era constante.
Segundo - E chegou a existir episódios de tortura em Passo Fundo?
JE - Olha, uma pessoa que não se tem constatação, mas que voltou da prisão muito abalada, foi o falecido jornalista João Freitas. Ele foi preso várias vezes e numa dessas, ele voltou muito abatido. Mas no quartel daqui eles usavam apenas um palavreado mais forte, uma indagação mais acirrada. Mas do que eu pesquisei, eu não encontrei nada sobre isso.
Segundo - E como era essa relação da ética na imprensa local naquela época?
JE - Olha, não havia essa preocupação. O que havia eram ataques recíprocos. Os dois jornais eram palanques dos dois partidos que disputavam o poder na cidade e dos grupos que disputavam o ensino universitário aqui. E os jornais, se fosse para atingir o concorrente, defendiam até a censura, o que obviamente era um efeito bumerangue. O Nacional foi o primeiro a sentir isso. O Diário da Manhã teve alguns problemas, como quando o Hélio Freitag publicou uma charge intitulada Patente Musical, na qual a pessoa sentava e saia uma música. E a charge era com um militar saindo com a calça na mão, todo borrado e tocando o Hino Nacional. O comandante não gostou e mandou prender o Hélio, que teve que fugir. Mas mesmo assim, no outro dia, o Diário da Manhã elogiava o regime militar que tinha perseguido seu jornalista durante todo o dia anterior. Então você podia escrever seu texto, só que quem respondia era a pessoa. Quando estourava, não havia apoio nenhum. Outro cuidado que as duas empresas tiveram foi o de eliminar edições que pudessem comprometê-los. Praticamente todas as edições de abril de 1964 desapareceram do arquivo regional. Eu fui encontrar alguns exemplares em Porto Alegre no Museu Hipólito José da Costa. O Nacional, por exemplo, depois daquela situação com o Grey Belles, e principalmente por estar vinculado ao nome do Tarso de Castro, passou a ter problemas sérios com verbas publicitárias. Não conseguia remodelar seu parque gráfico, tentaram concorrer a uma rádio e não ganharam. Se alguém foi mais retalhado economicamente, certamente foi O Nacional.
Segundo - E quais jornalistas você pensa que marcaram aquela época?
JE - Olha, eu cito três. O João Freitas, que foi o que mais sofreu. Argeu Santarém e o Ivaldino Tasca.
Segundo - E quando que essa situação começou a se acalmar nos jornais?
JE - Eu creio que foi no governo do Geisel. E o fato que marca isso foi o caso do Clodoaldo, o motociclista morto a tiros, aquele que causou uma revolta popular na cidade inteira. Nesse caso a imprensa trabalhou livre. Os dois jornais, que brigavam e trocavam farpas, condenaram de forma unânime o que havia acontecido. Então esse episódio foi um marco de que um novo tempo que começava a surgir. A imprensa local começou a trabalhar mais abertamente, embora a questão do denuncismo ainda continue muito presente em Passo Fundo. É uma marca da sociedade passo-fundense, que eu não sei se algum dia vai acabar. |
|